No dia 09 de novembro, chega ao Rio de Janeiro a grande exposição retrospectiva “Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito”, um panorama dos mais de 70 anos de trajetória do consagrado fotógrafo carioca. A mostra será apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro, CCBB, RJ, depois de ter sido exibida com enorme sucesso no Instituto Moreira Salles de São Paulo (IMS Paulista), e marca o início da parceria – inédita – entre as duas instituições. O IMS fechará sua sede carioca para reforma em abril de 2023.
“Essa bela parceria não poderia começar de forma melhor. Inaugurá-la com uma mostra que tem tanta relação com a identidade carioca e que o público do Rio de Janeiro não poderia perder de forma alguma é muito significativo” afirma Sueli Voltarelli, gerente geral do CCBBRJ. E complementa: “As imagens de Firmo despertam memórias de uma afetividade profunda, que certamente aumentam a conexão das pessoas com a produção cultural brasileira”. Marcelo Araujo, diretor-geral do Instituto Moreira Salles, ressalta a especial importância da parceria com o CCBB: “É um privilégio poder apresentar a exposição de Walter Firmo no Rio de Janeiro numa instituição de tamanho prestígio, e com uma relação tão forte com a cidade e sua população.”
Com curadoria de Sergio Burgi e Janaina Damaceno, “Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito” ocupará todas as salas do segundo andar do CCBB RJ com 266 fotografias, produzidas desde 1950, no início da carreira de Walter Firmo, até 2021. São imagens que retratam e exaltam a população e a cultura negra de diversas regiões do país, registrando ritos, festas populares e religiosas, além de cenas cotidianas. O conjunto destaca a poética do artista, associada à experimentação e à criação de imagens muitas vezes encenadas e dirigidas. “Acabei colocando os negros numa atitude de referência no meu trabalho, fotografando os músicos, os operários, as festas folclóricas, enfim, toda a gente. A vertigem é em cima deles. De colocá-los como honrados, totens, como homens que trabalham, que existem. Eles ajudaram a construir esse país para chegar aonde ele chegou.”, diz Walter Firmo.
O fotógrafo percorreu intensamente todo o país, mas sempre manteve um vínculo especial com o Rio de Janeiro, sua cidade natal, onde iniciou e construiu sua carreira e desenhou sua trajetória na fotografia, a partir da vivência de homem negro nascido e criado nos subúrbios e arrabaldes de Mesquita, Nilópolis, Marechal Hermes, Osvaldo Cruz, Vaz Lobo, Cordovil, Parada de Lucas, Vista Alegre e Irajá, territórios do samba de raiz e do permanente ronco da cuíca.
Dividida em núcleos temáticos, a mostra traz retratos memoráveis de grandes nomes da música brasileira, como Cartola, Clementina de Jesus e a icônica fotografia de Pixinguinha na cadeira de balanço, além de destacar a importante trajetória de Walter Firmo como fotojornalista e de dedicar uma seção à fotografia em preto e branco do artista, pouco conhecida e, em grande parte, inédita.
“Walter Firmo incorporou desde cedo em sua prática fotográfica a noção da síntese narrativa de imagem única, elaborada através de imagens construídas, dirigidas e, muitas vezes, até encenadas. Linguagem própria que, tendo como substrato sua consciência de origem – social, cultural e racial -, desenvolve-se amalgamada à percepção da necessidade de se confrontar e se questionar os cânones e limites da fotografia documental e do fotojornalismo. Num sentido mais amplo, questionar a própria fotografia como verossimilhança ou mera mimese do real”, afirma o curador Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles, que assina a curadoria ao lado de Janaina Damaceno Gomes, professora da UERJ e coordenadora do grupo de pesquisa Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem Negra.
A exposição é uma oportunidade para o público conhecer em profundidade a obra de um dos grandes fotógrafos do nosso país, que até hoje mantém seu compromisso pelo fazer artístico: “Aí está o meu relato, a história de uma vida dedicada ao fazer fotográfico, dias encantados, anos dourados. Qual a minha melhor imagem? Certamente aquela que em vida ainda poderei fazer. Emoções, demais”, afirma o fotógrafo. Com patrocínio do Banco do Brasil, a exposição segue para os Centros Culturais Banco do Brasil Brasília e Belo Horizonte.
Núcleos temáticos
A exposição está dividida em sete núcleos temáticos. No primeiro, o público encontra cerca de 20 imagens em cores, de grande formato, produzidas ao longo de toda a sua carreira. Há fotos feitas em Salvador (BA), como o registro de uma jovem noiva na favela de Alagados (2002); em Cachoeira (BA), como o retrato da “Mãe Filhinha” (1904-2014), que fez parte da Irmandade da Boa Morte durante 70 anos; e em Conceição da Barra (ES), onde o fotógrafo retratou o quilombola Gaudêncio da Conceição (1928-2020), integrante da Comunidade do Angelim e do grupo Ticumbi, dança de raízes africanas; entre outras.
O segundo núcleo apresenta a biografia do artista, abordando os seus primeiros anos de atuação na imprensa, quando registrou temas do noticiário, em imagens em preto e branco. O conjunto inclui uma fotografia do jogador Garrincha, feita em 1957; imagens de figuras proeminentes da política nacional, como Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek; além de registros de ensaios de escolas de samba do Rio de Janeiro. Também há fotografias feitas para a reportagem “100 dias na Amazônia de ninguém”, publicada em 1964 no Jornal do Brasil, pela qual Walter Firmo recebeu o Prêmio Esso de Reportagem.
Nas próximas seções, a retrospectiva evidencia como, no decorrer de sua carreira, Walter Firmo passou a se distanciar do fotojornalismo documental e direto, tendo como base a ideia da fotografia como encantamento, encenação e teatralidade, em diálogo com a pintura e o cinema. Isso fica evidente no ensaio realizado em 1985 com seus pais (José Baptista e Maria de Lourdes) e seus filhos (Eduardo e Aloísio Firmo), no qual José aparece vestindo seu traje de fuzileiro naval, função que desempenhou ao longo da vida, ao lado de Maria de Lourdes, que usa um vestido longo, florido e elegante. O ensaio faz alusão às pinturas “Os noivos” (1937) e “Família do fuzileiro naval” (1935), do artista Alberto da Veiga Guignard (1896-1962).
Como destaque, a exposição apresenta, ainda, retratos de músicos produzidos por Walter Firmo, principalmente a partir da década de 1970. Nas imagens, que ilustram inúmeras capas de discos, estão nomes como Dona Ivone Lara, Cartola, Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Martinho da Vila, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Djavan e Chico Buarque. Nesse conjunto, está, ainda, a famosa série de fotografias de Pixinguinha feita em 1967, quando Firmo acompanhou o jornalista Muniz Sodré em uma pauta na casa do compositor. Após o término da conversa, o fotógrafo pegou uma cadeira de balanço que ficava na sala da residência, colocou no quintal, ao lado de uma mangueira, e propôs que Pixinguinha se sentasse nela com o saxofone no colo. Assim registrou o músico, em uma série de imagens que se tornaram icônicas.
A exposição traz também um ensaio com fotografias do artista Arthur Bispo do Rosário para a revista IstoÉ, em 1985, feitas na antiga Colônia Juliano Moreira, onde Bispo ficou confinado e criou seu acervo ao longo de cerca de 25 anos.
A retrospectiva apresenta diversos registros produzidos durante celebrações tradicionais brasileiras, como a Festa de Bom Jesus da Lapa, a Festa de Iemanjá e o próprio Carnaval do Rio de Janeiro. Há também um núcleo com fotos feitas em outros países, como Cuba, Jamaica e Cabo Verde.
Na mostra, o público poderá assistir, ainda, ao curta-metragem Pequena África (2002), do cineasta Zózimo Bulbul, no qual Firmo trabalhou como diretor de fotografia, e que trata da história da região que recebeu milhões de africanos escravizados. Também há um núcleo dedicado à fotografia em preto e branco, ainda pouco conhecida e em grande parte inédita, cujo destaque é a série de imagens feitas na praia de Piatã, em Salvador, entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000. Grande parte das obras exibidas provém do acervo do fotógrafo, que se encontra sob a guarda do IMS desde 2018, em regime de comodato.
Catálogo
A mostra é acompanhada de um catálogo, com imagens das obras da exposição, além de textos de autoria do próprio Walter Firmo, de João Fernandes, diretor artístico do IMS, e dos curadores Sergio Burgi e Janaina Damaceno. Há também uma entrevista do fotógrafo com os curadores e o jornalista Nabor Jr., editor da revista O Melenick. Segundo Ato, além de uma cronologia do fotógrafo assinada por Andrea Wanderley.
Sobre o artista
Nascido em 1937 no bairro do Irajá, no Rio de Janeiro, e criado no subúrbio carioca, filho único de paraenses – seu pai, de família negra e ribeirinha do baixo Amazonas; sua mãe, de família branca portuguesa, nascida em Belém -, Firmo começou a fotografar cedo, após ganhar uma câmera de seu pai. Em 1955, então com 18 anos, passou a integrar a equipe do jornal Última Hora, após estudar na Associação Brasileira de Arte Fotográfica (Abaf), no Rio. Mais tarde, trabalharia no Jornal do Brasil e, em seguida, na revista Realidade, como um dos primeiros fotógrafos da revista. Em 1967, já trabalhando na revista Manchete, foi correspondente, durante cerca de seis meses, da Editora Bloch em Nova York. Neste período no exterior, o artista teve contato com o movimento Black is Beautiful e as discussões em torno dos direitos civis, que marcariam todo seu trabalho posterior. De volta ao Brasil, trabalhou em outros veículos da imprensa e começou a fotografar para a indústria fonográfica. Iniciou ainda sua pesquisa sobre as festas populares, sagradas e profanas, em todo o território brasileiro, em direção a uma produção cada vez mais autoral.
Até 27 de março de 2023.