O artista sergipano Véio mostra esculturas na galeria Gustavo Rebello Arte, Copacabana, Rio de Janeiro, RJ. Cícero Alves dos Santos, conhecido no mundo das artes como Véio, exibe esculturas talhadas em troncos, galhos e raízes, nessa que é a sua primeira exposição individual no Rio de Janeiro. O trabalho deste artista combina aspectos da tradição popular – como a escultura em madeira, o aproveitamento das figuras sugeridas por troncos e galhos e o uso de ferramentas rudimentares – com cores intensas, muito mais próximas das cores industriais que dos matizes da natureza.
Essa estridência algo pop é intensificada por uma imaginação formidável, que nos faz ver em suas madeiras figuras híbridas, que compartilham traços dos bichos que conhecemos com os androides e transformers de filmes e desenhos animados. Com um simples canivete, Cícero esculpe formas diminutas em tamanho, mas com uma figuração enigmática, que lhes restitui a força reduzida pela escala.
Cícero Alves dos Santos vive nos arredores de Nossa Senhora da Glória, uma importante cidade do sertão de Sergipe, com aproximadamente 50 mil habitantes e uma feira de renome no Estado. A convivência com um ambiente tão ambíguo e dinâmico certamente instigou ainda mais o talento desse sertanejo incomum, que fez da preservação da memória de sua gente a razão de sua existência, mostrando um mundo rural que vai desaparecendo. Trabalho este que já foi exibido em Londres, em individual na Seeds Gallery, e já participou de coletiva na Fundação Cartier, em Paris.
“Quando a Vilma Eid, da Galeria Estação, sondou-me a respeito de uma mostra do trabalho do Véio, minha resposta afirmativa foi imediata. A obra do artista sempre me fascinou, pois dialoga com as questões da arte brasileira atual, não fica restrito ao rótulo de arte ingênua e popular, transcende”, analisa Gustavo Rebello.
“O que chama logo a atenção é o modo livre e franco como essa fauna imaginária chega ao real. Quase sempre em movimento, mais ou menos como um bicho sai do mato e, de repente, surge à nossa frente. Não sei, sinceramente, se Véio conhece Picasso e Miró. Em todo caso, eles o conhecem, rondam o seu imaginário, participam de seu processo de produção. A divertida economia de meios, a espontaneidade com que vêm a ser, certo tônus vital descontraído, talvez as deixem mais à vontade sob a rubrica do Pitoresco”, diz o curador da exposição, Ronaldo Brito.
Véio é como um repentista ágil, a improvisar com as madeiras nativas de seu habitat agreste, acompanhando ou contrariando as rimas de sua morfologia, e delas tirar efeitos inesperados. Alguma peças se me afiguram quase ready-mades do sertão – duas ou três manobras inspiradas bastam ao artista para transformar os galhos secos de uma árvore morta num bicho ligeiro de escultura.
“A nenhum texto crítico, ainda que curto e despretensioso, seria perdoável calar-se diante do pequeno escândalo que representa a cor na escultura de Véio. E não apenas porque se mostram cores abertas, sem nuances ou matizes, extrovertidas e vibrantes, aptas a competir com a luz brutal do sertão. Mesmo o seu negro parece suscetível de brilhar no escuro. O importante é que atuam de maneira substantiva na definição do corpo da escultura, caracterizam a sua personalidade. Intuitivamente, Véio faria um uso topológico da cor. Elas promovem a interação entre as partes das peças de modo a torná-las um Todo descontínuo moderno. As esculturas não se resumem a simples figuras projetadas contra um fundo neutro. Elas reagem a seu entorno, acontecem no mundo”, finaliza o curador da exposição, Ronaldo Brito.
Apresentação
Esta é mais uma conquista do Cícero Alves dos Santos, Véio. De Nossa Senhora da Glória a Paris, Veneza, Londres, e agora o Rio de Janeiro. Homem sensível, ele percebeu cedo seu dom. Tinha consciência de que era artista e, quando o conheci, sabia muito bem que o que desejava era o reconhecimento. Conseguiu, e isso não é algo fácil. Escultor desde sempre, seu trabalho ganhou espaço no mercado de arte entre colecionadores e instituições, como a Pinacoteca de São Paulo e a Fundação Cartier em Paris. No Rio de Janeiro ele está nas coleções do MAM e do MAR. Seu nome e sua obra são conhecidos e reconhecidos. A associação feliz da Galeria Estação com a Gustavo Rebello Galeria de Arte nos trouxe aqui. Gustavo, querido amigo e admirador do Véio, tornou-se importante parceiro para que a Cidade Maravilhosa também seja palco e sede desta individual. E o fato de o Ronaldo Brito ter aceitado, com alegria, o convite para a curadoria coroa este projeto. Seu texto, generoso e preciso, é mais um passo para a compreensão da obra contemporânea do Véio. Precisa ser lido e assimilado porque, entre muitos atributos, tem o mérito de contribuir para acabar com as falsas fronteiras na arte.
Divirtam-se.
Vilma Eid
A palavra do Curador
De Surpresa no Mundo
O que chama logo a atenção é o modo livre e franco como esta fauna imaginária chega ao real. Quase sempre em movimento, mais ou menos como um bicho sai do mato e, de repente, surge à nossa frente. E não se trata de um movimento representado – sua própria formalização é que é movimentada, rápida e sucinta a escultura se apresenta e nos interroga. Traduz assim o ideal moderno da autossuficiência da forma: ela sustenta a sua surpresa estética como se quisesse aparecer, de novo e sempre, pela primeira vez. Não sei, sinceramente, se Véio conhece Picasso e Miró. Em todo caso, eles o conhecem, rondam o seu imaginário, participam de seu processo de produção.
Dado o seu aspecto disforme, muitas dessas figuras mereceriam se incluir na categoria do Grotesco. Poderiam até responder ao célebre apelo surrealista de André Breton: “A beleza será convulsiva ou não será”. No entanto, a divertida economia de meios, a espontaneidade com que vêm a ser, certo tônus vital descontraído talvez as deixem mais à vontade sob a rubrica do Pitoresco. A meu olhar, pelo menos, não parecem nada assustadoras. Estranhamente familiares, teriam com certeza algo de onírico, jamais evocam contudo o terror do pesadelo. Mas o principal, o que de fato interessa é o seu modus operandi poético. Reparem a desenvoltura com que fazem coincidir meios e modos – seja qual for o seu enigma de origem, sua aparência intrigante, as contorções da madeira nunca perdem de vista a exigência escultórica básica: a peça há de ficar de pé por si mesma. Esses bichos inverossímeis começam por enfrentar o teste de realidade elementar: existir por conta própria, exercer sua liberdade de ação.
À contracorrente do cânone da chamada Arte Popular Brasileira (de resto, no modesto entendimento do crítico outsider nesse domínio, uma classificação essencialista caduca) as esculturas de Véio são tudo menos hieráticas. Não surgem, estáticas e extáticas, do fundo do tempo, a conservar tradições e vivências varridas pela ação predatória da modernidade. Tampouco obedecem à religiosidade inerradicável de certa estatuária humilde que costuma ser agraciada – e, com isso, esteticamente sublimada – com a aura da humanidade pura. Em comparação, já por sua mobilidade casual, a escultura de Véio resulta decididamente profana. Ninguém ousará contestar sua extração mítica; dito isso, ela vale sobretudo por seus achados formais, indissociáveis, é evidente, de seu conteúdo de verdade histórico e existencial. Ela nos atrai justo por sua contemporaneidade, porque nela pulsa uma vida imaginativa atual.
De imediato, sem preâmbulos, nos descobrimos às voltas com uma verve combinatória capaz de articular, desarticular e rearticular seus elementos plásticos de maneira coerente e inventiva. Nesse sentido, Véio demonstraria, acima de tudo, expediente. É o repentista ágil, a improvisar com as madeiras nativas de seu habitat agreste, acompanhando ou contrariando as rimas de sua morfologia, e delas tirar efeitos inesperados. Algumas peças se me afiguram quase ready-mades do sertão – duas ou três manobras inspiradas bastam ao artista para transformar os galhos secos de uma árvore morta num bicho ligeiro de escultura.
A nenhum texto crítico, ainda que curto e despretensioso, seria perdoável calar-se diante do pequeno escândalo que representa a cor na escultura de Véio. E não apenas porque se mostram cores abertas, sem nuances ou matizes, extrovertidas e vibrantes, aptas a competir com a luz brutal do sertão. Mesmo o seu negro parece suscetível de brilhar no escuro. O importante é que atuam de maneira substantiva na definição do corpo da escultura, caracterizam a sua personalidade. Intuitivamente, Véio faria um uso topológico da cor. Elas promovem a interação entre as partes das peças de modo a torná-las um Todo descontínuo moderno. As esculturas não se resumem a simples figuras projetadas contra um fundo neutro. Elas reagem a seu entorno, acontecem no mundo.
Ronaldo Brito
Até 25 de maio.