Mundo físico

09/set

A Galeria Virgílio, Pinheiros, São Paulo, SP, exibe obras dos artistas Fernando Burjato, Gabriele Gomes e Cleverson Oliveira.  A carreira dos três artistas tem início nos anos 1990, quando eram alunos da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, EMBAP, em Curitiba, PR. Logo que se formaram, cada um tomou um rumo diferente, fora da capital paranaense. Ainda assim, as obras dos três seguem paralelas, e nestes últimos vinte anos, têm mantido um rico diálogo, feito de aproximações e divergências, fato observado na mostra intitulada “Colapso”, realizada entre 2015 e 2016 no Museu Oscar Niemeyer, com a curadoria de Ana Rocha. “O mundo físico” é uma espécie de transbordamento da exposição curitibana, que teve mais de 11 mil visitantes; propõe um outro recorte do trabalho dos artistas, que se desenvolve em diversos materiais e linguagens: pintura, desenho, objeto, fotografia.

 

 

Sobre os artistas

 

Gabriele Gomes, Curitiba, PR, 1971, reside no Rio de Janeiro, produz instalações, fotografias, objetos e poemas, tendo como referência a tradição da pintura. Há em sua obra o desejo de fazer uma pintura que se estenda para fora do quadro, transformando em pintura aquilo que existe de mais trivial. Se Grabriele traz a pintura para o mundo físico, para os espaços entre as coisas, Cleverson Oliveira, Curitiba, PR, 1972, cria instalações gráficas, como desenhos de paisagem que podem ser vistos por dentro. Ou obras em grafite sobre papel em que o olhar do espectador oscila entre a nitidez da superfície e o caráter turvo de uma imagem que se reconhece. Fernando Burjato, Ponta Grossa, 1972, PR, desde 2000 trabalha principalmente como pintor. Seus quadros, entretanto, se alongam para fora dos limites da tela, a tinta escorre e seca, formando franjas, como uma pele que se escama e pende, como farrapos, contrastando com a luminosidade e a leveza das cores. É representado pela Galeria Virgílio desde 2009.

Texto de Daniela Vicentini

                              

O mundo físico, sabemos, não é estático. Nem uma rocha está mesmo parada. Ainda que tenhamos a sensação de que muita coisa não se mova, sequer este planeta em nossa percepção cotidiana. Assim, Gabriele Gomes, Fernando Burjato e Cleverson Oliveira ativam em objetos, pinturas e desenhos – que querem se afirmar como presenças físicas no mundo –, cada um a seu modo, percepções temporais distintas: coisas que trazem latente o vir a ser do processo de suas configurações.

 

Dos três, Gabriele é quem lança mão dos artefatos que estão ao alcance de todas as pessoas – um pirex, um paninho rosa de limpeza, garrafas de vidro vazias. Isso tem na casa de toda gente. Há também objetos afetivos do universo da artista – como livros e bibelôs – ou que parecem ter sido coletados em viagens e passeios – como pedras e conchas. E tudo remete ao ambiente das centenas de artigos que rodeiam a sua vida doméstica, mas poderia também ser a de outra pessoa. Então, um tanto de tinta, um volume de cor, se acomoda dentro ou sobre os objetos. E o processo corriqueiro do objeto comum para, adquire outra temporalidade: as garrafas não serão mais descartadas.

 

Tudo que nos rodeia se apresenta com um excesso de luz – cores fortes, letreiros, telas, as luzes estão bem acesas – e Gabriele as ilumina mais ainda: usa purpurina, espreme o tubo de tinta com cores industriais, elege cores saturadas. Embalagens e recipientes ganham outro tanto de cor chapada, sem escala de tonalidades. A tinta esparramada seca em sua liquidez, torna-se também coisa que se agarra a outra mas mantém uma aparência mole. Cristaliza-se no processo de estar conformando algo: borbulhando de dentro da garrafa, sobrepondo-se às superfícies.

 

Luz sobre luz, desfaz-se o contorno das coisas. Como que outra imagem de realidade se conforma, algo que traz um quê de uma atmosfera de sonho. A ação de Gabriele nos dá ferramentas para observar os objetos ao nosso redor como se pudéssemos olhá-los como que pela primeira vez. Raramente paramos para pensar em como as coisas vieram a ser o que são. Toda a complexidade do pensamento e fazer humanos que envolvem a existência de muitos itens. Eles estão aí, são úteis, descartáveis (ainda que não exista um fora) – tornam-se até mesmo invisíveis. Uma caneta esferográfica, um caderno quadriculado, como vieram a ser o que são? Gabriele os enlaça em pequenos arranjos jocosos – cor, forma, função. O pensamento e o olhar podem se deter, inclusive na individualidade de cada elemento.

 

Assim cria-se “Oba” na escala de uma mesa, tomando cerveja ou café, lembrando daquele passeio na praia com as conchinhas colhidas, depois deve-se limpar – nunca mais irei lidar com aquele paninho do mesmo jeito. É necessário reinventar – e por que não fazê-lo com instantes de um olhar generoso para o que está bem aqui? Conchinha sobre conchinha, o desejo é o de alcançar o céu, como a coluna sem fim de Brancusi. Ainda que no ato de erigir a tinta consiga apenas deitar-se.

 

Fernando Burjato tem na repetição de faixas um vocabulário desde muito tempo, já nas camisetas de seus autorretratos de quando começou enfurecidamente a desenhar, pintar e refazer. E repetidamente, todos os dias em seu ateliê, desde então, o fazer de Fernando se transforma por meio do excesso de sempre reconstruir. São muitos exemplares de um mesmo até que as transformações se insinuem – podem ser acidentes, desvios do fazer que são aceitos e tomam corpo. A arte é referência explícita: a grade moderna, a pintura como matéria, colagem, pinceladas, tinta escorrida, dripping, veladura, impasto, claro e escuro, qualidades de linhas e muito mais. Embebe-se de obras, experiência concreta da arte, essa é a realidade do artista. O sistema, portanto, não é algo para se adequar. É o ponto de partida para inventar excessos.

 

São pinturas a óleo em que aparecem faixas organizadas uma ao lado da outra, mais ou menos com a mesma largura e quantidade de tinta equivalente, cada cor num espaço definido. Diante de algumas, nos deparamos com o transbordamento da tinta para fora dos limites do quadro. Outras têm como suporte um paralelepípedo protuberante, com tinta escorrida nas laterais. Definem-se imediatamente dois lugares – um tanto do que é dentro está fora. Nas bordas, a tinta aparece efetivamente como coisa e o suporte inusitado é caixa: temos certeza de que se trata do mundo físico, com objetos tridimensionais que produzem sombras. Pode-se ver isso claramente no desenho em pastel que retrata as próprias pinturas – ou é estudo que as antecede?

 

Desse contraste evidente outros tantos vão surgindo. Há um todo ritmado, uma coisa depois da outra, mas a predileção é por cores dissonantes e o tratamento de pintura de cada parte cria acontecimentos específicos – numa vemos uma sequência de cores em degradê, noutra não identificamos nenhuma pincelada ou há brilhos ou vestígios de rastos do pincel ou um aglomerado de tinta. Como se o espaço de dentro fosse feito por citações de procedimentos pictóricos. O todo se organiza tanto como colagem de formas geométricas, por assim dizer, quanto como colagem de maneiras, já tradicionais, de se ativar uma superfície de pintura. Evidencia-se a convivência de coisas muito diferentes num lugar que de início parece um todo organizado. E quando nos demoramos em algo, a pintura parece dizer: “Ei, veja isso aqui agora, poderia funcionar assim também, não é? Olhe para esse esfumaçado, veja esse volume, viu a cor aqui em cima?”, e assim por diante. Nem tudo é muito sério, as curvas e as dobras e rasgos parecem querer brincar, a caixa é um treco na parede. Sorrimos.

 

As luzes também estão bem acesas, algumas cores são estridentes até. A potência de produzir é circunscrita a uma força de vontade individual, o fazer construtivo convive com sua impossibilidade – as bordas realmente caem.

 

Cleverson Oliveira apresenta desenhos feitos com pó de grafite e caneta permanente sobre tela; portanto, em escalas de cinzas e preto e branco. Eles parecem querer configurar uma paisagem, mas ela não se mostra totalmente. É apenas aventada por manchas nas quais reconhecemos as sinuosidades do mundo vegetal. Há também o desenho de ícones que querem representar gotas de água em escala real – se olharmos de perto vemos uma forma ovalada preenchida na metade de cima de preto e na de baixo de branco. Com pequenas diferenças de tamanho, esses desenhos são repetidos em toda a superfície da tela. Desse modo, vemos o desenho de gotas e o de silhuetas de plantas. E essas duas coisas nos fazem ver uma terceira que na verdade não existe: uma placa de vidro. O jogo do desenho é transformar a superfície da tela em vidro. Vemos aquilo que não existe como coisa – mundo físico. Não há desenho do vidro e é isso o que vemos o tempo todo. Temos então uma paisagem intuída através de um vidro embaçado sobre o qual há gotas – vidro, gotas e manchas.

 

Cleverson realiza trabalhos em diversas mídias. Entre elas, a fotografia e o vídeo. Há certa narrativa, um aparente descompromisso, muito humor. Interessa atentar como o artista lida com a imagem nesses veículos de reprodução. Sabemos que ela é constituída por pequenos pontos. E ele toma partido por evidenciá-los; portanto, as figuras aparecem granuladas, com contornos incertos. As cenas se dão com imagens que estão sempre prestes a ser desconfiguradas. As superfícies da impressão e do vídeo são porosas, ele constrói por indefinições, utiliza silhuetas – como também nesses desenhos de paisagem.

 

Bem, estamos abrigados da chuva quando contemplamos essas imagens. Seria de dentro de uma casa? Ficaríamos assim tanto tempo observando as vidraças? A paisagem está bem perto. Em suas fabulações, o artista introduz a experiência da viagem como assunto poético. E esses desenhos me remetem ao tempo em que passamos a olhar a paisagem quando estamos num ônibus, num trem, carro de passeio, vendo a chuva e o mundo cambiante e embaçado, impossibilitados de fato de estar lá. Apesar de que a dimensão da tela pode contradizer essa imagem. Afinal, um desenho tem a liberdade de ser apenas aquilo que é, em preto e branco.

 

O mundo físico de Gabriele Gomes, Fernando Burjato e Cleverson Oliveira é feito por coisas moles, cortinas que caem e vapores. Objetos do mundo comum reconfigurados, pinturas de faixas e desenho de paisagem – não alardeiam novidades. A potência dos trabalhos é reavivar sempre a vontade de arte – o processo de vir a ser é assunto.

 

 

De 13 de setembro a 08 de outubro. 

 

Nuno Ramos e Climachauska

08/set

A unidade do Sesc Pompeia, São Paulo, SP, recebe a instalação “O globo da morte de tudo”, de Nuno Ramos e Eduardo Climachauska, dois inventivos e múltiplos artistas das artes visuais. O projeto é pensado há mais de quatro anos, a partir do ritual da dádiva, da oferenda, existente em sociedades primitivas. Consiste em dois globos de aço sobrepostos e unidos por um ponto, “formando um oito tombado, o símbolo do infinito”, como aponta Nuno Ramos. Estes globos estarão conectados a quatro paredes de prateleiras de aço, com seis metros de altura, nas quais serão depositados mais de 1.500 objetos, comprados, coletados e doados por amigos e conhecidos ao longo do processo de criação.

 

Os objetos são agrupados em quatro categorias: cerâmica, cerveja, nanquim e porcelana. “Essas categorias podem ter um aspecto antropológico, mas é muito arbitrário”, explica Eduardo Climachauska. “É uma forma que encontramos para organizar as coisas e podemos trocar os objetos de categoria também”, conclui.

 

Segundo descrito pelos artistas, cada uma das quatro categorias presentes nas estantes tem um significado. A categoria cerâmica tem a ver com coisas arcaicas: instrumentos agrários, berrantes e material de construção. A categoria cerveja tem objetos ligados à vida cotidiana, como máquinas, troféus e bolas de sinuca. A categoria nanquim está ligada à morte, às coisas escuras e calcinadas. Já, a categoria porcelana representa o luxo, a frescura e coisas fora de moda, como peças de decoração, frascos de vidro e computadores antigos.

 

Estes elementos empilhados em bandejas de vidros planos formam um frágil equilíbrio, contrastando com a presença dos dois globos. Fazem, assim, uma espécie de inventário da cultura prestes a desabar. No dia 4 de outubro, um mês após a abertura da exposição, às 20h, acontece um evento-performance no qual dois motoqueiros giram dentro dos globos. Com o ruído provocado pelos motores e a trepidação, os objetos despencam parcialmente das prateleiras espatifando-se no chão. A exposição terá dois momentos: o antes e o depois da performance.

 

O momento performático convida à reflexão sobre alguns conceitos, tais como: consumo, acumulação e memória afetiva em relação aos objetos do cotidiano, sem tirar o bom humor da cena: ver as coisas quebrando. “A obra traz um aspecto cômico, um fundo de raiva, com sensação de querer que tudo vá pro inferno”, destaca Nuno Ramos, que ainda ressalta: “é a obra que mais me divertiu”.

 

Para Climachauska, a destruição das coisas, quando se quebram e se separam é, ao mesmo tempo, o momento no qual se misturam, virando matéria. “Surge uma fusão dos materiais, mistura de cores, líquidos, texturas […] e depois existe outra organização que independe da nossa vontade”, conclui o artista.

 

 

 

Sobre os artistas

 

 

Amigos e parceiros de longa data, Nuno Ramos, 1960, São Paulo, e Eduardo Climachauska, 1958, São Paulo, já compuseram juntos diversas canções, nove delas gravadas por Rômulo Froes e uma por Gal Costa, e realizaram os filmes: “Iluminai os terreiros” (2007), “Casco” (2004) e “Para Nelson – Luz Negra” e “Duas Horas” (2002), os dois primeiros com o cineasta Gustavo Moura. O caráter questionador de Nuno Ramos não se apresenta apenas na obra “O globo da morte de tudo”. A transmutação de formas por via violenta adquire caráter procedimental em toda a produção do artista, que possui desdobramentos em várias áreas. Nuno cursou filosofia na Universidade de São Paulo. Realizou os primeiros trabalhos tridimensionais em 1986. Em 1992, em Porto Alegre, expôs pela primeira vez a instalação 111, que se refere ao massacre dos presos na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru). Publicou, em 1993, o livro em prosa “Cujo” e, em 1995, o livro-objeto “Balada”. Venceu, em 2000, o concurso realizado em Buenos Aires para a construção de um monumento em memória aos desaparecidos durante a ditadura militar naquele país. Em 2002, publicou o livro de contos “O Pão do Corvo”. Para compor suas obras, o artista emprega diferentes suportes e materiais, e trabalha com gravura, pintura, fotografia, instalação, poesia e vídeo. Participou de quatro edições da Bienal de São Paulo (em 1985, 1989, 1994 e 2010, quando levou polêmicos urubus ao Pavilhão da exposição) e da 46ª Bienal de Veneza (em 1995).

 

Formado em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA-USP (1976-1980), Eduardo Climachauska vem realizando exposições em importantes museus, instituições culturais e galerias de arte no Brasil e no exterior. Já realizou exposições no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, no Museu de Arte de São Paulo – MASP, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC USP, no Centro Cultural São Paulo – CCBB, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM-RJ, e em galerias, como a SycomoreArt em Paris, entre outras. Produziu filmes e vídeos experimentais de curta e média metragem, exibidos em mostras e festivais de várias capitais, como “Outono de Bashô” (1994), em parceria com Guto Araujo; “Bólide-Filme” (1995); “Exposto nº 2” (1997); “The RightNumber” (2001), com Guto Araujo; “Três Caras e um Matagal” (2001), com Alexandre Boechat e Guto Araujo; “Pensamento Selvagem” (2002), com Alexandre Boechat; além dos realizados com Nuno.

 

 

A instalação fica aberta para visitação até 06 de novembro.

Vik Muniz na Galeria Nara Roesler

A tênue fronteira entre realidade e representação, entre o objeto original e sua cópia, são questionamentos que fazem parte da nova série de trabalhos que Vik Muniz inaugurou na Galeria Nara Roesler, Jardim Europa, São Paulo, SP. Com curadoria de Luisa Duarte, a mostra – “Handmade” – reúne mais de 70 peças, nas quais o artista deixa de lado qualquer recurso narrativo e torna explícito o esqueleto processual do trabalho.

 

“Sempre funciona das duas maneiras. O que você espera ser uma foto não é e o que você espera que seja um objeto é uma imagem fotográfica. Em uma época em que tudo é reprodutível, a diferença entre a obra e a imagem da obra quase não existe”, explica Vik.

 

Durante o processo de pesquisa de seu catálogo raisonné, lançado recentemente, VikMuniz se deu conta de como havia deixado de lado um procedimento recorrente em sua produção no início de sua carreira, quando tinha menos envolvimento com o campo da fotografia: a manipulação da superfície fotográfica após a realização da imagem.Retomou então tais estratégias, refazendo e complementando as fotografias. O resultado é uma espécie de antologia, formada por projetos antigos e recentes. “É como um cardápio das ideias que já usei, um compêndio de estratégias expostas de formas muito simples”.

 

O público não verá em “Handmade” obras realizadas a partir de imagens conhecidas e sim alusões à vasta tradição da arte abstrata. Para isso, o artista destila suas fórmulas básicas na criação de maneiras inusitadas de meditar sobre a imagem e o objeto, sobre a ambiguidade dos sentidos e a importância da ilusão. A individual traça a constante preocupação do artista em transcender as dimensões simbólicas da imagem.

 

Um exemplo de investigação que não se encerra com o ato de fotografar é “TwoNails” (1987/2016), cuja primeira versão pertence à coleção do Museu de Arte Moderna, MoMA, de Nova York. Extremamente enxuta, a composição mostra uma folha de papel presa por dois pregos: um real, o outro fotografado, gerando um quadro tão ambíguo que se torna impossível identificar as diferenças por meio de uma reprodução fotográfica.Além da paradoxal relação entre imagem e objeto e do recorrente uso de estratégias ilusionistas – “A ilusão é um requisito fundamental de todo tipo de linguagem”, diz -, esses trabalhos flertam com a arte conceitual e estabelecem um intenso diálogo com a arte abstrata, cinética e concreta. Sobretudo, segundo Vik Muniz, pelo interesse comum em relação às teorias da Gestalt, mais especificamente nos campos da psicologia e da ciência.Repetição, ritmo, profundidade, espaçamento, uso das cores primárias ou gradações sutis de cinza e preto estão entre as questões caras à abstração e que compõem o alfabeto da exposição.

 

 

 

Até 05 de novembro.

O Útero do Mundo

05/set

O MAM, Parque do Ibirapuera, SP, retrata corpos indomáveis e histéricos na exposição “O útero do mundo”. A curadora Veronica Stigger selecionou cerca de 280 obras de 120 artistas contemporâneos em que o corpo aparece como lugar de expressão de um impulso desvairado e que se apresenta transformado, fragmentado, deformado, sem contorno ou definição. São pinturas, desenhos, fotografias, esculturas, gravuras, vídeos e performances do acervo do museu.

 

As obras, pertencentes ao acervo do MAM, mostram a indomabilidade e as metamorfoses do corpo. Com curadoria da escritora e crítica de arte Veronica Stigger, as produções selecionadas – num universo de mais de cinco mil trabalhos da coleção do museu – revelam um corpo que não respeita a anatomia e liberto de amarras biológicas e sociais. Baseada na proposição dos surrealistas de compreender a histeria como uma forma de expressão artística, a apurada seleção da curadora faz um elogio à loucura, ilustrando esse “corpo indomável” que, embora reprimido pela humanidade, manifesta-se no descontrole, na histeria e na impulsividade.

 

Para organizar a mostra, a curadora recorreu a três conceitos extraídos da obra da escritora Clarice Lispector que servem como fios condutores que separam os trabalhos nos núcleos “Grito ancestral”, “Montagem humana” e “Vida primária”. Segundo VeronicaStigger, a autora naturalizada brasileira retomou com brilho o elogio ao impulso histérico. “Clarice organizou um pensamento simultâneo da forma artística e do corpo humano como lugares de êxtase e de saída das ideias convencionais, tanto da arte quanto da própria humanidade”, afirma. São exibidas, conjuntamente, obras de artistas celebrados como Lívio Abramo, Farnese de Andrade, Claudia Andujar, Flávio de Carvalho, Sandra Cinto, Antonio Dias, Hudinilson Jr., Almir Mavignier, Cildo Meireles, Vik Muniz, Mira Schendel, Tunga, Adriana Varejão e muitos outros, além de duas performances de autoria de Laura Lima.

 

 

Grito Ancestral

 

Abrindo a mostra, “Grito ancestral” contém obras que representam uma série de gritos. “É como se esse som, anterior à fala e à linguagem articulada, atravessasse os tempos e rompesse com as próprias imagens”, explica a curadora. “O grito se contrapõe à ponderação e pode ser visto como indício de loucura. Gritar é, em certa medida, libertar-se das frágeis barreiras que delimitam aquilo a que convencionamos chamar de “cultura” em oposição à “natureza” e ao que há de selvagem e indomável em nós”, afirma. Nessa área estão expostos três autorretratos da série “Demônios”, espelhos e máscaras celestiais, de Arthur Omar, artista com trabalhos que demonstram estados alterados de percepção e de exaltação. Também fazem parte a fotografia “O último grito”, de Klaus Mitteldorf; a colagem “Medusa marinara”, de Vik Muniz; fotos de performances de Rodrigo Braga; a gravura “Mulher”, de Lívio Abramo; além de imagens em preto e branco de Otto Stupakoff. Com a série “Aaaa…”, a artista Mira Schendel apresenta uma escrita que não constitui palavras ou frases e em que se percebe a desarticulação da linguagem e uma volta ao estado mais bruto e inaugural.

 

 

Montagem humana

 

Neste nicho são apresentados corpos fragmentados, transformados, deformados e indefinidos, o que prova a indomabilidade do mesmo. Na exposição é percebido como o traço se convulsiona nas obras intituladas “Mulheres”, de Flávio de Carvalho, nos desenhos de Ivald Granato e nas produções de Tunga, Samson Flexor e Giselda Leirner. Nas fotografias, é a falta de foco que borra o contorno da figura nas imagens de Eduardo Ruegg, EdouardFraipont e Edgard de Souza. Com o uso da radiologia, é possível verificar o interior do corpo humano nas obras de Almir Mavignier e Daniel Senise. Destacam-se ainda as fotografias feitas por Márcia Xavier, um desenho de Cildo Meireles e as produções que misturam imagens, couro e madeira de Keila Alaver que representam, literalmente, corpos transformados e fragmentados.

 

 

Vida Primária

 

Este nicho dá vez às formas de vida mais elementares, como fungos, flores e folhagens. “Este tipo de vida desestabiliza a percepção que temos da própria vida porque, de certa maneira, deteriora as coisas do mundo “civilizado”, explana VeronicaStigger. Isso é ilustrado na série “Imagens infectas”, de Dora Longo Bahia, em que um álbum de família é alterado pela ação de fungos. Em “Vivos e isolados”, Mônica Rubinho usa papéis propositalmente fungados em placas de vidro para promover a geração desta espécie. No vídeo “Danäe nos jardins de Górgona” ou “Saudades da Pangeia”, Thiago Rocha Pitta propõe uma leitura mitológica da vida primária. Ainda são exibidas partes do corpo como o coração feito de bronze, de autoria de José Leonilson, e a foto “Umbigo da minha mãe”, de Vilma Slomp. A vagina, porta de entrada e de saída do útero, é mostrada em diversos trabalhos como nas gravuras de Rosana Monnerat e de Alex Flemming, nas fotografias da série “Vulvas”, de Paula Trope e no desenho “Miss Brasil 1965”, de Farnese de Andrade.

 

 

 

Sobre a curadora

 

Veronica Stigger é escritora, crítica de arte e professora universitária. Possui doutorado em Teoria e Crítica de Arte pela USP e pós-doutorados pela Universitàdegli Studi di Roma “La Sapienza”, pelo MAC-USP e pelo Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. É professora das pós-graduações em Fotografia e em História da Arte na FAAP, além de coordenadora do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema (AIC). Foi curadora de Maria Martins: metamorfoses no MAM São Paulo (2013) e ganhou o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e o Prêmio Maria Eugênia Franco, concedido pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) de melhor curadoria. Com Eduardo Sterzi, curou “Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro”, fotógrafo, no SESC Ipiranga. Entre as publicações, estão Os anões (SP: Cosac Naify, 2010), Delírio de Damasco (SC: Cultura e Barbárie, 2012) e Opisanieświata (SP: Cosac Naify, 2013).

 

 

De 05 de setembro a 18 de dezembro.

Marcianos e Intergaláticos

A Casa Nova Arte e Cultura Contemporânea, Jardim Paulista, São Paulo, SP, inaugura a exposição “Ulla, Ulla, Ulla, Ulla! Marcianos, Intergalácticos e Humanos”,com curadoria de Jane de Almeida. Em paralelo à 32a Bienal de São Paulo a coletiva apresenta obras com inspiração “alienígena” dos artistas David Medalla (Filipinas), Fernando Duval (Brasil), Henrique Alvim Corrêa (Brasil), Kiluanji Kia Henda (Angola) e OlafBreuning(Suiça).

 

A mostra propõe ao público a reflexão sobre imagens clichês da ciência, a construção de seres e objetos do espaço exterior, além da produção de utopias no século XXI. Partindo da ideia de que estamos vivendo tempos políticos estranhos e “mensagens ambíguas vêm sendo transmitidas por seres intergalácticos ao planeta Terra”, a curadoria convida “artistas com contatos especiais com o cosmos” para esta exposição. De acordo com a curadoria, “alguns artistas ousam decodificar figurativamente seres espaciais desconhecidos, outros invertem e alteram as imagens científicas, alguns se apresentam com a própria forma alienígena e outros elaboram utopias para o século XXI. “Ulla, Ulla, UllaUlla!é composta por 5 artistas brasileiros e estrangeiros.

 

O destaque da exposição são as obras do artista brasileiro Henrique Alvim Corrêa (1876 – 1910), criador das ilustrações de “Guerra dos Mundos”, ficção e clássico do autor britânico H.G. Wells no qual relata a invasão de marcianos na Terra e que completa neste ano 110 anos desde seu lançamento. Será exibida uma edição original do livro “Guerra dos Mundos” de 1906, com 31 gravuras feitas por Alvim Corrêa, além de cinco desenhos originais que deram origem a esta edição do livro. A exposição apresentará também uma pintura a óleo inédita produzida em 1900.

 

David Medalla, artista filipino que será homenageado na próxima Bienal de Veneza, apresenta as obras “Stitch in Time AroundMars” (Costurando no Tempo ao Redor de Marte) e “CosmicPandora’sMicro-Box”(Micro-Caixa de Pandora Cósmica). O primeiro consiste em uma instalação que convida o público a bordar em um tecido suas utopias sobre a possível existência de planetas e seres desconhecidos e o último trabalho, que foi desenvolvido durante sua estadia em São Paulo em 2010, apresenta dejetos e objetos coletados pelo artista, criando uma ‘caixa de pandora’ contemporânea. São Paulo, desta forma, transforma-se no “cosmos” de Medalla.

 

O angolano Kiluanji Kia Henda, destaque da última Bienal de São Paulo e Bienal de Veneza, apresenta a obra “The badguysandgoodguys” (Os caras bons e os caras maus) de 2016, composta por uma série de 10 serigrafias que traça uma narrativa sobre a influência da Guerra Fria na África. O título do trabalho e as legendas foram apropriadas do documentário “Histórias da Guerra Fria”, produzidos em 1997 pelo fundador da CNN, Ted Turner. As imagens alienígenas contrastam com as legendas de guerra, compondo a ideia primeira da exposição: como as práticas políticas se desassociam da realidade do cidadão comum, tornando-se alienígenas e alienadoras.

 

Fernando Duval, artista brasileiro, participante da última Bienal do Mercosul, traz a obra “Instrumentos musicais de Wasthavastahunn”, série de desenhos de 2010 na qual apresenta os instrumentos musicais de seu universo artístico pertencente ao planeta “Fahadoica”, da Galáxia de Washemin. Estes instrumentos pertencem à importante instituição wasthiana que é o Instituto do Silêncio. O universo artístico de Duval produz um referente paralelo ao nosso universo científico e às nossas instituições “reais”.

 

Outro destaque é o artista suíço OlafBreuning que apresenta os vídeos “Home 1”, de 2004 e “Home 2”, de 2007 e “Cansomeonetelluswhywe are here”(Alguém pode nos dizer porque nós estamos aqui), instalação de 2010. OlafBreuning, possui obras em importantes galerias de arte como a Saatchi de Londres, e com apresentações em importantes espaços artísticos como a WhiteChapel, o Centre Georges Pompidou ou a Bienal do Whitney é muitas vezes considerado “freak” (bizarro), ou como ele mesmo gosta de se considerar “naif”(ingênuo). Breuning é, ele mesmo, um “alien” da arte contemporânea e seus filmes “Home 1”e “Home 2” desafiam não só os limites entre realidade e ficção, mas também os conceitos instituídos de obra de arte.

 

O nome da exposição, “Ulla! Ulla! Ulla! Ulla! Marcianos, Intergalácticos e Humanos”, foi inspirado em manifestos futuristas das utopias socialistas dos soviéticos. Refere-se ao som das naves marcianas da obra de H.G Wells e ao manifesto “A trombeta dos marcianos” do poeta russo VelimirKhlebnikov. Escrito em 1916, este ano marca o centenário do manifesto que faz uma espécie de convocação para se pensar a arte e a invenção. Um outro manifesto posterior, assinado pelo intelectual russoViktor Shiklovsky, também faz uso do “Ulla, Ulla” para receber alienígenas que literalmente deveriam alienar os humanos”, diz Jane de Almeida.

 

A mostra conta, ainda, com uma série de encontros nomeados “Utopias e Escapismos do Século XXI – ou, Como decodificar o que a classe política quer nos dizer. Ulla, Ulla!”. A programação dos encontros será divulgada no decorrer do período expositivo.

 

 

Até 02 de novembro.

Calder e a Arte Brasielira

Em “Calder e a Arte Brasileira”, o Instituto Itaú Cultural, Cerqueira César, São Paulo, SP,lança luz sobre a influência no Brasil da obra do artista norte-americano, pioneiro da arte cinética, e traz à tona a importância de seu papel na formação do neoconcretismo no país.A leveza, movimento e colorido da obra de Alexander Calder em materiais como o metal, o ferro e o arame inundam os três andares do espaço expositivo do Itaú Cultural. Com curadoria de Luiz Camillo Osorio, e em parceria com a Expomus e a Calder Foundation, conduzida por Alexander S. C. Rower, neto do artista, em Nova York, a mostra apresenta 60 peças – 32 do próprio artista, entre móbiles, guaches, maquetes, desenhos, óleos sobre tela e dois audiovisuais. Outras 28 são produções de 14 brasileiros, que revelam a proximidade de seu trabalho ao do artista.

 

Nos anos 40 e 50, experimentalistas como Abraham Palatnik, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Willys de Castro, Judith Lauand, Lygia Pape, Waltercio Caldas, Antonio Manuel e Luiz Sacilotto também embarcaram no caminho da arte cinética influenciando gerações até hoje. A influência se detecta em Ernesto Neto, Franklin Cassaro, Carlos Belvilacqua, Cao Guimarães e RivaneNeuenschwander, igualmente presentes na exposição.

 

Segundo Luiz Camillo Osorio, a poética de Calder, cujo rigor construtivo ganha tonalidade lírica, é uma referência para os artistas brasileiros, com quem teve relação estreita, porém ainda pouco afirmada. Existem obras suas em coleções brasileiras desde os anos de 1940, por meio das quais pode se seguir o rastro de sua influência na vanguarda do país. O movimento presente nos móbiles do norte-americano, por exemplo, está também na série de “Bichos”, de Lygia Clark, nos relevos espaciais dos “Parangolés” de Oiticica e nos “Cinecromáticos” de Palatnik.Alexander S.C. Rower relata: “A visita do meu avó ao Brasil teve um impacto duradouro, tanto emocional como intelectual. Ele ficou fascinado pela exuberância e energia da cultura brasileira – ele amou especialmente o samba. No sentido inverso, seus móbiles cativaram os artistas brasileiros e a classe artística. A exposição no Itaú Cultural apesenta esse fascinante diálogo – afirmando mais uma vez a afinidade de Calder com o espírito brasileiro”.

 

O artista norte-americano realizou a sua primeira exposição no Brasil no final da década de 1940. Passados 13 anos, participou da segunda Bienal de São Paulo deixando influências diretas no imaginário poético no país. Sua relação com os arquitetos modernos foi próxima. Também com o crítico de arte Mario Pedrosa, que teve posição determinante para que se realizasse uma retrospectiva de Calder no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1959. “A sua obra inscreveu-se na formação construtiva brasileira, misturando o lúdico e o geométrico e isso merece melhor avaliação histórica”, observa o curador. “É esta relação que pretendemos trabalhar nesta exposição.”

 

A mostra “Calder e a Arte Brasileira”, de acordo com Luiz Camillo Osorio, busca evidenciar essa relação e a sua disseminação no imaginário artístico brasileiro, além de mostrar importantes trabalhos da trajetória do norte-americano. “Apresentamos obras de alguns de nossos artistas que foram, direta ou indiretamente, marcados por ele”, diz o curador.A relação geracional com a tradição concreta e neoconcreta, a vontade comum de concentração e expansão da forma abstrata -no plano pictórico e fora dele -, são conferidas no piso -2.De Calder encontram-se ali, entre outras obras, guaches sobre papel, “Sem título”, de 1946, “Composição”, do mesmo ano e doada pelo artista ao MASP, em 1948. Elas figuram no mesmo espaço que Abraham Palatnik com “Aparelho cinecromático”, 1969/86, “Objeto Cinético”, 1986, e mais um de mesmo nome, de 1990/1991. Lygia Clark, entre outros brasileiros, está presente neste andar com o guache, nanquim e grafite sobre papel “Composição”, 1952. De Hélio Oiticica tem “Mestaesquema”, um de 1957, outro de 1958. Só para citar mais alguns, este andar comporta “Ascenção”, de 1959, de Willys de Castro e, ainda, “Concreto 28”, obra de Judith Lauand, de 1956.

 

No piso -1, a linha curatorial sugere o desdobramento subliminar da influência de Calder na arte contemporânea brasileira. “O ponto que cabe ressaltar aqui é a presença do corpo na ativação da forma, a incorporação do movimento e da geometria atravessados por um contexto social e cultural específico, onde passado e futuro se entrecruzam”, observa o curador. De Calder, estão ali, por exemplo, a maquete “Brasília” (c.a.1959), “Móbile amarelo”, preto, vermelho, branco, de 1946. Dos brasileiros, encontram-se dos “Bichos” de Lygia Clark, dos “Bilaterais” e “Parangolés”, de Hélio Oiticica, às esculturas de Waltercio Caldas, de 1997 e 2002, “NaveMeditaFeNuJardim”, 2015, de Ernesto Neto e “Catamarã Aéreo”, 1997, de Carlos Bevilacqua.Por fim, no primeiro andar, os móbiles desenham-se no espaço, desmaterializam-se, resistem à gravidade. Citando algumas das obras de Calder que ali convivem, estão “Vermelho, Branco, Preto” e “Bronze”, 1934, nunca antes exibida no Brasil, “Digitais Escarlate”, 1945 – obra de extrema importância que não é exposta há mais de 60 anos, nunca esteve no Brasil e sempre foi mantida com a família do artista -, “Bosquet é o Melhor dos Melhores”, 1946, “Trinta e dois discos”, 1951, exibida na Bienal de São Paulo, em 1953-1954. Elas dialogam com produções como “O ar mais próximo”, 1991, de Waltercio Caldas, “Três Cassarinhos Vermelhos na Gaiola”, 2010, de Franklin Cassaro, ou “Sopro”, 2000, de Cao Guimarães e RivaneNeuenschwander.

 

Neto de Calder e condutor da mostra, Alexander S.C. Rower reforça a identidade brasileira do avô relatando que sua visita ao Brasil teve um impacto tanto emocional como intelectual. “Ele ficou fascinado pela exuberância e energia da cultura brasileira”, conta.

 

 

Até 23 de outubro.

A mão do povo

01/set

Masp recria histórica mostra de arte popular montada por Lina Bo Bardi

 

Um São Jorge encara o público na entrada. Atrás e ao lado dele no primeiro andar do Masp estão tablados cheios de carrancas, ex-votos, tachos de alambique, colheres de pau, joias de escravas. No fundo, um Cristo agoniza na cruz que pende do teto. É o fim apoteótico da mostra ressuscitada agora num remake de exatidão obsessiva, milimétrica.

 

Quase meio século depois da primeira montagem de “A Mão do Povo Brasileiro”, pesquisadores examinaram fotografias de época e listas de empréstimos para recriar com total fidelidade uma das mostras mais ambiciosas e controversas da história do museu.

 

Quando levou esses objetos de arte popular à exposição inaugural do Masp na avenida Paulista, Lina Bo Bardi já tinha alguma noção do potencial explosivo de seu gesto.

 

Ela chegou a montar uma mostra parecida em Roma, quatro anos antes, mas o evento foi interditado por ordem de agentes da ditadura, que discordavam dessa visão do Brasil quando tentavam emplacar a ideia de um país moderno, uma futura potência. No dia da abertura, que não ocorreu, o jornal “L’Espresso” concluía que “a arte dos pobres apavora os generais”.

 

Em 1969, Bo Bardi desafiou mais uma vez os militares. Mais do que uma exposição, a mostra que abriu o museu foi uma espécie de manifesto cenográfico, em que sua idealizadora tentava mostrar objetos ditos do povo na mesma caixa resplandecente de vidro e concreto que abrigava quadros renascentistas e impressionistas.

 

“É importante entender esse momento”, diz Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp. “Era o centro financeiro do Brasil, onde estavam obras-primas da arte europeia, e essa produção popular estava ali em contraste, em fricção radical com aquilo. Tem um dado subversivo que permanece, porque isso ainda é marginalizado, menosprezado. A gente vê certo preconceito com esse material.”

 

No caso, um preconceito que vem se dissolvendo, dada a multiplicação de mostras do tipo em museus e galerias, que vêm bancando uma revisão da ideia de arte popular. Isso passa também pela implosão de rótulos como “naïf” ou “outsider”, termos até há pouco comuns para indicar obras de nomes de fora do circuito tradicional das artes visuais.

 

Mesmo às vezes beirando o fetiche pelas ideias de Bo Bardi, o Masp parece se esforçar para liderar esse movimento, querendo superar, nas palavras de Pedrosa, a “distinção entre arte e artefato”. Tanto que o museu planeja uma integração desses acervos, infiltrando carrancas e outros objetos do tipo entre os cavaletes de vidro do segundo andar, reservado à arte dos grandes mestres aceitos pela história.

 

Nesse sentido, o remake de “A Mão do Povo Brasileiro” é o primeiro passo na retomada da relação entre o alto e o baixo clero da coleção, mas também joga luz sobre o pensamento de Bo Bardi. “Nos esboços, a Lina anotava coisas como ‘refletor de teatro’, ‘luz dramática'”, observa Tomás Toledo, um dos organizadores da mostra. “Ela tinha uma preocupação cenográfica.”

 

Isso se revela tanto na simetria dos tablados que sustentam os objetos quanto na ordem das peças, que lembra uma procissão religiosa. Flanar pelos corredores do primeiro andar do museu dá a sensação de ser um voyeur num desfile de formas incongruentes, de roupas de vaqueiro a peças de cerâmica, arte plumária, brinquedos, placas de feira e moendas de pedra.

 

No fundo, Bo Bardi quis arrebatar mais pelo acúmulo e pelo espanto dos volumes do que pelas peças individuais. Existe ali, como lembra Pedrosa, um horror ao vazio.

 

E à distância. Tanto que a arquiteta preferiu santos de procissão a figuras de altar, mais íntimas da multidão, e as luzes da galeria foram rebaixadas a uma tonalidade mais quente. O que ressurge no Masp é a exaltação dessa mão calejada e inquieta do povo. (Texto de Silas Martí).

 

 

 

De 1º de setembro a 29 de janeiro de 2017.

Portugal contemporâneo

O Museu Afro Brasil, instituição da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, situado no Portão 10, Parque do Ibirapuera, São Paulo, SP, inaugura a exposição temporária “Portugal Portugueses – Arte Contemporânea”. Considerada a maior exposição de arte portuguesa contemporânea já realizada no país, a mostra integra uma trilogia sobre a mais nova produção artística da África, de Portugal e do Brasil com patrocínio das empresas EDP Brasil, com apoio do Instituto EDP, Banco Itaú e Rainer Blickle, Leonardo Kossoy e Orandi Momesso.

 

“Portugal Portugueses” é a segunda exposição dentro da proposta da trilogia desenvolvida pelo curador da mostra, Emanoel Araujo, responsável por homenagear as principais raízes da cultura brasileira (africana, portuguesa e indígena) à luz de uma leitura contemporânea nas artes visuais. Esta grande mostra sucede “AfricaAfricans”, recentemente eleita pela Associação Brasileira de Críticos de Arte como a melhor exposição do ano de 2015.

 

Uma seleção de mais de 40 artistas, de profundos vínculos com o país lusitano, apresentará trabalhos que contemplam recortes artísticos diversos. Um grande destaque é a participação de artistas modernistas consideradas pelo curador a base da contemporaneidade portuguesa, mulheres que tornaram proeminentes a arte lusitana no circuito internacional através de obras surrealistas, geométricas e que se conectam com Brasil e a África.

 

 

Artistas participantes

 

“Portugal Portugueses” contará com obras de grandes nomes como: Albuquerque Mendes, Ana Vieira, Antonio Manuel, Artur Barrio, Ascânio MMM, Cristina Ataíde, Didier Faustino, Fernando Lemos, Francisco Vidal, Gonçalo Pena, Helena de Almeida, Joana Vasconcelos, João Fonte Santa, João Pedro Vale e Nuno Alexandre, Joaquim Rodrigo, Joaquim Tenreiro, José de Guimarães, José Loureiro, José Pedro Croft, Jorge Molder, Julião Sarmento, Lourdes Castro, Manuel Correia, Maria Helena Vieira da Silva, Michael de Brito, Miguel Palma, Nuno Ramalho, Nuno Sousa Vieira, Orlando Azevedo, Paula Rego, Paulo Lisboa, Pedro Barateiro, Pedro Cabrita Reis, Pedro Valdez, Rui Calçada Bastos, Sofia Leitão, Teresa Braula, Tiago Alexandre, Vasco Araújo, Vasco Futscher e Yonamine.

 

 

A palavra do curador

 

“Por muitas razões a arte portuguesa tem um leque enorme de situações que nos comovem, talvez porque nela existam resquícios da África, do Brasil e dela mesma, naturalmente. Esta exposição celebra uma união inevitável de encontros e desencontros do que foi e do que é a nossa formação como povo, descoberto, colonizado e independente, por um português e um brasileiro, Pedro IV, rei de Portugal, que se tornou Dom Pedro I – Imperador do Brasil, e como esta independência que tão cedo foi, não nos afastou, mas consolidou as raízes profundas dessa invenção. Portugal é muito mais que um país, é uma aventura, como nos outros tempos memoráveis, senhor das conquistas e das descobertas, do Brasil e da África, pelo mundo afora. Portugal foi um terrível escravocrata, e se valeu da escravidão negra para desenvolver suas descobertas na América e na própria África, também foi um colonizador que se miscigenou e espalhou artes e ofícios.”, comenta Emanoel Araujo, fundador e Diretor Executivo Curatorial do Museu Afro Brasil.

 

“… A arte é uma antena para captar e expressar sentimentos aleatórios e arcaizantes. É através dela, e de seus laços no inconsciente coletivo, que manifestações representam os lados triangulares da invenção. E, é nessa invenção que “Portugal Portugueses” se arma para mostrar uma faceta desta arte portuguesa contemporânea, revelando a modernidade e a sua atualidade. Claro que, em se tratando de expressões artísticas, nem sempre as escolhas são totalmente abrangentes. São muitos os artistas seminais de uma grande história da arte portuguesa moderna e contemporânea. Evidentemente, esta exposição não tem um caráter didático e nem esgota o assunto diante da complexidade de tantos autores.”.

 

 

Sobre a exposição

 

O modernismo das artistas Maria Helena Vieira da Silva, Ana Vieira, Helena de Almeida, Paula Rego e Lourdes Castro, formam um núcleo poderoso de mulheres criadoras, que incorporam com suas obras e linguagens, uma valiosa contribuição à arte contemporânea portuguesa. É, a partir delas, que “Portugal Portugueses” se desenha, abrindo espaço, através de diferentes linguagens e estratégias como a geometria, instalações, esculturas, fotografias, desenhos e grandes painéis, reunindo consagrados nomes aos novos talentos que despontam. Dentre eles, podemos citar a instalação de João Pedro Vale e Nuno Alexandre. Feito de collants, tecido, ferro, arame, corda e espuma, “Feijoeiro” é uma instalação de grandes dimensões. Semelhante ao tradicional conto infantil, este enorme pé de feijão chama a atenção de adultos e crianças com suas cores fortes e vibrantes, um convite à interação.

 

Dentre os vários trabalhos selecionados, há aqueles com dedicada atenção aos diálogos entre o Brasil e o continente africano. É o caso do artista português, Vasco Araújo, conhecido no cenário artístico paulistano, seus trabalhos articulam questões políticas às heranças de um passado colonial. “O Inferno não são os outros” é uma obra que provoca a reflexão sobre os limites de nossas decisões e ações, colocando em cheque as barreiras entre aquilo que parece ser da ordem do privado, mas que está repleto de consequências na dimensão política do mundo, principalmente no mundo ocidental.

 

A série “Pau Brasil”, de autoria de Albuquerque Mendes, também compõe a mostra fazendo uma ponte entre Portugal e uma antiga colônia – o Brasil. Nela, o pintor expõe a diversidade de estilos humanos, explorando a miscigenação tanto em nosso país quanto em Portugal. Seus quadros retratam homens e mulheres negros, brancos e indígenas sempre em poses semelhantes, explorando tanto a diversidade étnica quanto propondo as semelhanças entre as pessoas.

 

A exposição traz também jovens artistas como Sofia Leitão e Teresa Braula. Leitão inicia seus primeiros trabalhos em 2003 e desde então mantém um delicado olhar sobre a cultura de seu país por meio de soluções visuais exuberantes. Suas grandes instalações já se destacaram quando foram expostas em cidades portuguesas como Porto e Lisboa. Para a mostra no Museu Afro Brasil, teremos a oportunidade de apreciar “Matéria do Esquecimento”. Já Teresa Braula, expoente artista no circuito europeu, apresenta suas investigações sobre o espaço e o lugar da memória.

 

Dentre os reconhecidos nomes da arte contemporânea portuguesa, o fotógrafo Jorge Molder apresenta a série “Dois Deles”, onde investigações sobre a auto representação se mesclam a própria presença do artista em meio a uma longa sequência de práticas reflexivas, sugerindo um complexo repertório visual.

 

Parcerias com galerias, colecionadores e os próprios artistas portugueses estão sendo importantes para a realização deste projeto, como é o caso da Galeria Filomena Soares, que possibilita conhecer importantes obras. Como a série de grandes painéis fotográficos “Explorers” do artista Didier Faustino e “Lookingback” da artista Helena Almeida, além da intrigante obra em vidro acrílico da artista Lourdes Castro e produções de Joaquim Rodrigo, Paula Rego e os desenhos em grafite de Pedro Barateiro.

 

 

 Homenagens

 

Simultaneamente a “Portugal Portugueses”, acontecerão no museu três homenagens póstumas a importantes personalidades portuguesas: Beatriz Costa, grande atriz de cinema e teatro, sua trajetória teve importante participação no teatro brasileiro; Rafael Bordalo Pinheiro, ceramista e caricaturista que criou importantes revistas no Brasil do século XIX, e também pelos 170 anos de seu nascimento; e Amadeo de Souza Cardoso, um pintor revolucionário, o Museu Afro Brasil apresenta uma reprodução dos desenhos do álbum XX Dessins, editados recentemente na exposição retrospectiva dedicada ao artista, realizada no Grand Palais de Paris.

 

Uma sala especial homenageará a artista portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, que viveu no Brasil no período entre 1940 e 1947, convivendo com outros artistas europeus residentes no país, além de intelectuais e pintores brasileiros.

 

 

Encontro com os artistas

 

No dia seguinte à abertura da mostra, a instituição realiza um encontro com alguns dos artistas convidados, para um debate com o público sobre suas produções e questões tratadas pela exposição.

 

 

 

Até 08 de janeiro de 2017.

Valor – Palestra

31/ago

A formação de valor na arte contemporânea. O Ateliê397, com apoio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, via ProAC, convida a todos os interessados para o encerramento do seminário: “A formação do valor nas artes visuais”, com a mesa “O desafio do equilíbrio no sistema da arte”. A conversa com Regina Pinho, Tadeu Chiarelli, Thais Rivitti e Fabio Cypriano, com a mediação de Tatiana Ferraz acontecerá na próxima quarta-feira, dia 31 de agosto às 20hs. A entrada é gratuita e sem inscrição.

 

Serviço: A formação de valor na arte contemporânea

 

Local: Ateliê397 – Rua Wisard, 397 – Vila Madalena – São Paulo – SP

 

Múltiplos397 Edição 2016

O projeto “Múltiplos397” é uma iniciativa do Ateliê397, Vila Madalena, São Paulo, SP, que, desde 2010, visa estimular a produção de novas obras, promover a formação de novos públicos, incentivar o colecionismo como prática cultural e divulgar trabalhos de artistas contemporâneos. O projeto também colabora com a continuidade dos demais projetos do espaço.

 

Desde sua criação, o “Múltiplos397” lançou trabalhos de artistas com trajetórias relevantes no meio de arte brasileiro. Nas suas edições anteriores, participaram do projeto os artistas Leda Catunda, Nino Cais, Nazareno, Marcelo Amorim, Fabio Flaks, Luiz Roque e Laura HuzakAndreato.

 

Esta nova edição do “Múltiplos397” conta com dois trabalhos: “Queima”, da artista Débora Bolsoni, e “Arenito”, dos artistas Antônio Ewbank, Chico Togni e Edu Marin. Estão disponíveis para venda vinte exemplares de cada trabalho.