A Galeria Raquel Arnaud, Vila Madalena, São Paulo, SP, apresenta até o dia 18 de junho a exposição “O estado das coisas”, individual de Waltercio Caldas com apresentação do crítico de arte Paulo Sergio Duarte.
Arte política e política da arte
Na época que vivemos, e não por acaso, a política contamina a arte mais do que qualquer variante do vírus durante a pandemia. Não faltam razões para isso: razões étnicas, de gênero, fascismo pelo mundo afora e tantas outras. A história da arte está carregada de grandes exemplos de arte política. A morte de Marat, 1793, de David; A Liberdade conduzindo o povo, 1830, de Delacroix; e, antes desta, A jangada da Medusa, 1818-1819, de Géricault; pela primeira vez, um bando de personagens anônimos, marinheiros náufragos, foram retratados em alto-mar numa tela cuja escala estava reservada para grandes eventos históricos, batalhas, coroações de monarcas e outros. Ela mede 491 por 716 centímetros. O artista tomou conhecimento do naufrágio por uma notícia de jornal dois anos antes, um fait divers. Quando os sobreviventes chegaram à terra, contaram suas agruras – até se alimentaram da carne do corpo de companheiros mortos –, e Géricault se motivou. Guernica, 1937, de Picasso, fica como o momento mais elevado da arte política do século XX. Mas nenhuma dessas obras estaria na história da arte pelas suas motivações políticas externas; estão lá porque, cada uma a seu modo, contribuíram para modificar a linguagem da arte de seu tempo: esta, a política da arte.
Na exposição O Estado das Coisas, de Waltercio Caldas, temos inúmeros exemplos da experiência política em obras com experimentos inéditos na longa trajetória do artista. E não são poucas as surpresas. O modo como conjuga pintura e escultura numa mesma peça é uma delas. Há um jogo e este é dado pela linguagem, a única política estritamente artística passível de ser praticada no interior da obra de arte: a transformação da linguagem, aquela política que não está presente em praças ou manifestações, mas que clama por novas experiências de percepção.
Examine-se três dessas demonstrações.
Observe-se Mondrian em casa. Duas reproduções de Mondrian sobre papel estão dispostas diante de nossos olhos, de dimensões diferentes. Dependendo da distância que tomamos, exige um certo estrabismo, a distância que os separa dilata o espaço pela simples presença. A intervenção do elástico esticado traz uma sutil ironia. Sabe-se que no final de 1919, início de 1920, Mondrian começou suas grades, sempre ortogonais; o elástico traça uma diagonal, além de projetar-se em volume para sustentar um copo que se apoia num simulacro de mesa; ao se estender para o copo, soma três diagonais. Além da curva que contorna o volume do copo. Essas transgressões e transformações em relação à obra que se encontra presente no título, sempre sutis e rigorosas, nos ensinam: não há política da arte sem experiências de linguagem.
Não existe arte contemporânea que não seja experimental. Sabemos disso desde Adorno e sua Teoria Estética. Mas existe algo em Waltercio Caldas, além do experimentalismo: um ascetismo que não se confunde com aquele da Minimal Art, trata-se de uma economia que não é avessa ao campo semântico, à polissemia. Isso estimula a experiência da obra.
Em Acústica II, o exercício sobre o negro domina a cena, apesar da presença sutil do vermelho e do amarelo. De novo, para quem tem memória, a história da arte se infiltra. Como não lembrar o Quadrado negro, 1916, de Malevich, os anos de pinturas negras de Ad Reinhardt e, pela tela à esquerda, Soulages. Nesta, como em todas as obras desta exposição, é preciso não ver alegorias no sentido tradicional do termo. Não há imagens substituindo narrativas. Existe, sim, associação de ideias, mas não aquela freudiana, a associação livre da situação psicanalítica. Aqui as associações de ideias são induzidas pelas obras com a possibilidade da multiplicação de sentidos na apreensão subjetiva de seus significados.
Caravaggio pode servir de síntese de tudo que acima foi dito. Não existe referência à vida atribulada do artista que dá título ao trabalho. Sabemos de seus duelos, de suas múltiplas prisões, de seu exílio, de sua vida curta – morreu aos 38 anos, em morte controversa. Nada disso está presente no Caravaggio desta exposição, certamente não é uma alegoria. O que interessa é que o artista pioneiro do que viria a ser o Barroco ficou na história da arte não por esses fatos, mas por ter dominado o chiaroscuro como nenhum outro havia feito anteriormente. E é esse que está presente, com seu nome grafado escultoricamente, na pintura-escultura de Waltercio Caldas. Os exercícios nas duas pinturas, a maior verde-escura e a menor vermelho-escura, apesar das diferentes dimensões, são similares: enunciam duas regiões separadas por uma curva. As regiões se distinguem habilmente, o vermelho e o verde mais escuros seguem em direção a apenas um pouco, apenas um pouco mesmo, mais claro. Observem que a verde, maior, é pintada sobre uma tela bem menos espessa que a menor, vermelha. Mas as pinturas estão conversando com outros elementos escultóricos. São elementos dourados que interferem sobre a visão da pintura verde e deixam a vermelha livre, e ao mesmo tempo constroem uma profundidade. Estabelecem um limite físico de aproximação. Vamos rever Caravaggio de outro modo de agora em diante. Temos entre nós um Caravaggio nosso contemporâneo.
Essa é a política da arte, diferente da arte política.
Paulo Sergio Duarte, abril de 2022.