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Zéh Palito na Simões de Assis, SP
30/mar
A exposição “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola” é a primeira individual do artista visual Zéh Palito (1986, Limeira), em São Paulo, realizada na Simões de Assis, Jardins, São Paulo SP. Introduzido à prática artística por meio do graffiti/pixação, teve ainda jovem aulas de pintura, por estímulo de sua mãe, após um acidente andando de skate. Posteriormente, viria a estudar Design Gráfico e Belas Artes, formação essa que lhe deu a oportunidade de viajar o mundo e exibir suas obras em mais de 30 países.
O primeiro verso do poema “Sympathy”, de 1893, publicado por Paul Laurence Dunbar (1872, Dayton – 1906, Dayton) – primeiro poeta afro-americano a ter destaque nos Estados Unidos e Inglaterra -, expressa, em tom sombrio, a situação dos negros na sociedade americana do final do século XIX e faz uma alusão à falta de plenitude. Tal poema inspirou o título da primeira autobiografia da poeta afro-americana Maya Angelou (1928, St. Louis – 2014, Winston-Salem) na qual retrata parte de sua infância difícil vivida em uma cidade sulista nos anos 30 e 40 durante o período da segregação. Por consequência, também inspirou o título desta exposição.
Nas pinturas apresentadas vemos representações de pessoas negras em poses altivas, com roupas elegantes, com logotipos de marcas conhecidas, em locais triviais como praias, piscinas, em frente a automóveis ou mesmo em fundo e de forma bastante positiva, trazendo aos retratados humanidade. Zéh nos confronta com pinturas-exaltação, pessoas plenas, autoconfiantes e resolvidas, imagens positivas, em contraste com as imagens criadas nos últimos séculos, nas quais a população negra majoritariamente era representada em situações que corroboram o trauma da colonização.
Em uma das telas da mostra está representado um casal na praia, tendo o rapaz estampados em sua sunga dois botos-cinzas, símbolo da cidade do Rio de Janeiro. Outros elementos que remetem à capital carioca – local onde ocorreu o maior aporte de pessoas negras escravizadas na história da humanidade -, são o popular biscoito de polvilho Globo e a canga com o desenho da bandeira nacional, mas nas cores verde, rosa e branco. A flâmula é semelhante àquela que apareceu no desfile campeão do carnaval carioca de 2019 da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, cujo o lema positivista francês “ordem e progresso” foi substituído por “índios, negros e pobres”. Tal samba enredo do carnavalesco Leandro Vieira (1983, Rio de Janeiro) homenageou figuras populares brasileiras importantes, porém ainda não reconhecidas pela narrativa hegemônica como Carolina Maria de Jesus (1914, Sacramento – 1977, São Paulo) e Marielle Franco (1979-2018, Rio de Janeiro).
Em ação semelhante, o artista utilizou-se de nomes ainda pouco citados nos livros de história e na academia como títulos de suas obras. Temos homenageadas Maria Firmina dos Reis (1822, São Luís – 1903, Guimarães) escritora, compositora e abolicionista, considerada a primeira romancista brasileira, representada violentamente por anos como uma mulher branca; e Laudelina dos Santos Mello (1904, Poços de Caldas – 1991, Campinas) pioneira na luta pelo direito dos trabalhadores domésticos no Brasil, militante da Frente Negra Brasileira e participante do Teatro Experimental do Negro (TEN), iniciativa do artista plástico, ativista, escritor, dramaturgo, ator, diretor de teatro, poeta, jornalista e professor universitário Abdias Nascimento (1914, Franca – 2011, Rio de Janeiro). A tela intitulada Leide Maria (1961, Ivaiporã), trabalhadora do lar e artesã, é uma homenagem à mãe do artista, que colaborou em outra pintura intitulada “Nosso Sonho” com a feitura de fuxicos de tecidos encerados coletados por Zéh nas suas viagens pelo continente africano como voluntário de projetos humanitários. Outro familiar homenageado é seu pai, Marcel Francisco (1962, Limeira), soldador automotivo aposentado. Na tela “O vaso de Marcel”, um rapaz em traje estampado com motivos de pássaros, referência aos cut-outs de Matisse, segura um vaso com flores semelhantes a bougainvilles.
Frequentes nas pinturas são as representações de frutas como cocos, melancias, bananas, abacaxis, mamões e plantas como helicônias, palmeiras e flores que remetem à tropicalidade. Elas aparecem junto às figuras humanas, ora adornando, ora como temas de estampas – porém, não menos dedicadas, muitas vezes ocupam posição central na composição. Informação relevante é o fato de o artista manter com seus pais, em paralelo ao ateliê de pintura, um jardim/pomar com plantio de diversas espécies, como por exemplo bananeiras (próximas a um muro rosa), bananas rosas (ornamentais) semelhantes às estampas do trajes de banho das moças na tela “Ubatuba ou Guarujá”, mangueiras, mamoeiros e bougainvilles.
Tais representações de frutas têm, na história da arte brasileira, um lugar importante, valendo lembrar de um dos primeiros pintores negros a ingressar na Academia Imperial de Belas Artes, o premiado Estevão Roberto da Silva (c.1844-1891, Rio de Janeiro), reconhecido por suas natureza-mortas. Há uma tela, em especial, intitulada “Garoto com Melancia”, de 1889 e hoje pertencente ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, na qual um jovem negro aparece sorridente, sozinho, desfrutando da fruta diaspórica, originária do continente africano. Ela se relaciona com a pintura “Odin ordene o vento”, na qual um rapaz aparece próximo à mesma fruta, degustando um picolé e estampando em sua roupa a rosa-dos-ventos da Estrela (tradicional e elitista fábrica de brinquedos brasileira), além de estar rodeado de brinquedos populares como bolinha de gude, pipa e estilingue.
Ainda na mesma pintura, podemos identificar diferentes tons de preto na pele do rapaz, além da cor ocre que cria efeito de douramento. Os olhos do personagem parecem flutuar em um fundo negro, relacionando-se à prática do afro-americano Kerry James Marshall (1955, Birmingham), que produziu nos anos 80 pinturas tonais pretas ligadas à temática do homem invisível, nas quais, à primeira vista, só são identificados os olhos e dentes. Depois, porém, com uma análise mais atenciosa, era possível observar as variações da cor preta nas definições do corpo. Essa é uma provocação à inviabilização dos sujeitos e da produção cultural negra. Ironicamente, uma dessas telas ficou por mais de 25 anos no banheiro da casa de um colecionador, e agora é uma das obras fundamentais da pintura ocidental.
As obras dessa exposição, apesar de bastante coloridas – evocando alegria -, carregam aspectos políticos pertinentes e também falam de traumas, dores. Talvez, o pássaro enjaulado que canta seja uma metáfora do momento em que estamos, no qual perdura uma pandemia ainda fatal, guerras, governos autoritários alinhados à necropolítica, privação de direitos básicos. E, mesmo assim, seguimos nossas vidas. Ou esse mesmo pássaro de viver restrito já não se lembra, ou até nunca gozou de sua plenitude, alienado.
Ademar Britto Jr
A celebrada gravadora e também escultora Maria Bonomi, inaugura em 27 de outubro, monumental obra no Memorial da América Latina, São Paulo, SP.
08/out
Na Bergamin & Gomide
03/set
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“Tem bicho que eu coloco a agressividade dele só nos pés. (…) Às vezes ele tá correndo mesmo, né? E às vezes lá vai ele, tranquilão.” – Maria Lira Marques
Convidamos você a descobrir um pouco mais sobre o fascinante universo de Maria Lira Marques. No vale do Jequitinhonha, rodeada pela arte e música, a artista conta como desenvolveu o seu trabalho com a cerâmica e com o barro. A sua cantoria embala o retrato do seu bairro, da sua rua, das suas obras. O retrato de uma arte genuína que se mistura à vida e lhe dá sentido.
A exposição Maria Lira Marques: Obras recentes, com texto crítico do curador Rodrigo Moura, apresenta pinturas em que a artista utiliza o barro como matéria prima, criando um imaginário próprio da fauna e flora sertaneja; o resultado são obras que se destacam pela textura orgânica, cuja paleta de cores remete às técnicas desenvolvidas ao longo de gerações no Vale do Jequitinhonha, local onde nasceu e vive até hoje. A individual acontece de 21 de agosto a 1º de outubro de 2021, na Casa Flávio de Carvalho.
Visitação:
21 de agosto a 1º de outubro de 2021
Segunda a sexta, 10 às 19 horas
Sábado, 10 às 15 horas
Casa Flávio de Carvalho
Alameda Ministro Rocha Azevedo, 1052
*Lembramos que o uso de máscara é obrigatório
CONVITE – Arjan Martins na Bienal
Lygia Clark na Pinakotheke, Rio
19/ago
De @maxperlingeiro para @lygiaclark
Querida Lygia
Permita-me a intimidade. Além da grande admiração que tenho por você há mais de cinco décadas, apesar de ter estado com você muito menos do que deveria por pura timidez, recebi a responsabilidade de planejar e implantar um projeto de exposição e uma publicação pelo centenário de seu nascimento. É, Lygia… O tempo passou e nós não percebemos.
O que falar sobre você depois destas exposições? Fundació Antoni Tàpies, em Barcelona, curadoria de Manuel J. Borja Villel, o Manolo, em 1997, com itinerância pela Europa, terminando no Paço Imperial no Rio de Janeiro, em 1998; Musée des Beaux-Arts de Nantes, França, 2005, com itinerância na Pinacoteca do Estado de São Paulo; a tão sonhada exposição no MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), “O Abandono da Arte”, curadoria de Luiz Pérez-Oramas e Connie Butler, 2014; a “Retrospectiva” no Itaú Cultural, curadoria de Paulo Sergio Duarte e Felipe Scovino; e, finalmente. “Pintura como Campo Experimental”, 1948-1958, apresentada no Museu Guggenheim de Bilbao, curadoria de Geaninne Gutiérrez-Guimarães, em 2020.
Missão impossível!
Neste momento, lembrei-me de uma frase do genial Walt Disney: “Eu gosto do impossível, porque lá a concorrência é menor”. E assim foi.
Pensei em nossos heróis: Mario Pedrosa, Ferreira Gullar e Guy Brett. Infelizmente não existem mais. Mas me lembrei de nossos amigos: Yve-Alain Bois, Luciano Figueiredo e Lula Wanderley. E assim fui construindo uma rede de afetos, todos muito saudosos de você.
A equipe de pesquisa começou a trabalhar a partir de outubro de 2020, no dia em que você completou 100 anos. Fui informado por um jornalista de que eu tinha sido convidado pela Associação Cultural Lygia Clark, a instituição que cuida de seu legado, para fazer sua exposição. Daí em diante, foi muito trabalho. Comecei a ler e reler tudo o que havia disponível sobre sua vida e sua obra, apesar de uma terrível sequela de memorização e atenção que o vírus da Covid-19 me deixou. Meu foco era o “impossível”: a descoberta de obras inéditas, uma das características dos projetos monográficos da Pinakotheke; fotografias; documentos; registros; e cartas. Semanalmente, também chegavam dezenas de informações. Por falar em obras inéditas, descobrimos o paradeiro daquela “Escada” que você falou mais de uma vez de sua predileção, que estava com o seu amigo Hoco Martins Pereira, e o retrato de sua cunhada Berta Clark, entre muitas outras. E todas as informações foram devidamente checadas e rechecadas e tal resultado estará disponível nesta publicação, mais uma de que muito me orgulho de ter produzido. Ao mesmo tempo, era uma corrida contra o tempo, pois tínhamos um compromisso com uma itinerância, Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, dando uma dimensão nacional às comemorações de seu centenário. E aí mais um susto. Em fevereiro de 2021, não chegamos ao tão sonhado pós-normal. O jeito, Lygia, foi esperar. Guardar os instrumentos, limpar o palco, encerar o assoalho, ensaiar com afinco todos os dias e jamais perder a esperança. Eis que um novo planejamento surgiu: abriremos com todos os protocolos permitidos no dia 23 de agosto de 2021. Na luta de não deixar você completar 101 anos. Senão, perderíamos todo o nosso trabalho – e com a esperança de que os jovens com até 20 anos já estejam vacinados até lá. Lygia, os jovens admiram muito você e gostarão de ver seu trabalho. As crianças também. Temos uma tradição desde 1994 de manter um educativo muito eficiente e, quem sabe, conseguiremos retomar também as atividades dos “Sábados na Pinakotheke”.
Gostaria de compartilhar também com você a generosidade de todos os colecionadores que, durante décadas, reuniram suas obras e foram unânimes em emprestar tais preciosidades. É impossível agradecer a tantos amigos e profissionais que nos apoiaram. Lembra-se daquela divertida entrevista que você concedeu ao jornalista Matinas Suzuki Jr. e ao curador Luciano Figueiredo? Foi totalmente transcrita agora, com os recursos da tecnologia, e será publicada na íntegra. Seu amigo Yve-Alain Bois mandou-nos também um texto definitivo sobre você lá na Universidade de Princeton e cedeu-nos o exemplar número 1 de sua lendária “Revista Mácula”, em que seu trabalho foi comentado em 1965. Além disso, Marcio Doctors, um estudioso de seu trabalho, contribuiu com um belo texto. Paulo Herkenhoff foi generoso em nos ceder seu glossário sobre os diversos períodos de sua produção artística. Nosso saudoso amigo, o fotógrafo Alécio de Andrade também estará presente; sua mulher, Patrícia, cedeu-nos um belo ensaio fotográfico feito em Paris em 1966, quando você esteve por lá e causou um barulhão. Por fim, Lula e Gina foram impecáveis em me educar sobre seus “Objetos Relacionais e Sensoriais” e a eficácia de seu tratamento, junto aos pacientes que precisavam realmente de seu talento. No auge de minha crise de atenção, Lula pediu-me que lesse os originais de seu novo livro, inédito… Não teve jeito! Em 36 horas, fui obrigado a ler mais de 100 páginas dos originais, em um fim de semana, porque sabia que, na segunda-feira, seria sabatinado. E foi um verdadeiro desbloqueio mental.
Enfim, espero, querida Lygia, que você goste do que fizemos para comemorar essa data tão significativa. E, agora, deixo para meu legado comemorar o próximo centenário.
Em tempo: Mario Carneiro e seu filme “Memória do corpo” também estarão presentes.
Rio de Janeiro, agosto de 2021.
Max Perlingeiro
Percurso da exposição “Lygia Clark (1920-1988) 100 anos”
Pinakotheke Cultural, Rio de Janeiro
23 de agosto a 23 de outubro de 2021
Escadas
A única coisa boa que ficou (do estudo com Burle Marx) foram exatamente as “Escadas”. Para a artista, ficou o que era reflexão sobre o espaço. Certas Escadas aludem à progressão/regressão do desenho “A verdade sobre a folha da palmeira”, de Paul Klee. As folhas de Klee e as “Escadas” de Clark são triângulos truncados em espiral, articulados no vértice. Essas “Escadas” são estruturas modulares, ritmos arquitetônicos do espaço, fluxos físicos e territoriais de tempo. Nessa poética do espaço, escadas são espaços de passagem, ambivalência entre subir e descer, um devir formado por um contínuo ir e vir, pois, tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo (Heráclito, “Fragmentos”).
Kleemania
Na primeira geometria programática de Lygia Clark, por volta de 1952, há pinturas em que os planos se sobrepõem, integrados por transparências que lembram aquarelas de Paul Klee. Frequentemente em Klee, como por vezes em Clark, o tempo se transmuta sob firme conotação musical de espaços fugados, referindo às fugas de Bach. Essas questões são um ensaio primordial de modulação da relação espaço-tempo na trajetória de Clark.
Arte/Arquitetura
Nos anos imediatos do pós-guerra, dois movimentos da arquitetura marcavam Lygia Clark. Em Paris, os estudos com Fernand Léger terão sensibilizado Clark para integração entre arte e arquitetura na reconstrução das cidades europeias, e conduzido seu mestre a problemas da arte no espaço público. “Chamei a isso de ‘a destruição da parede’ ou a ‘parede elástica’. Cria-se outro espaço”, pensa o pintor francês na relação entre arquitetura, parede e pintura. O aludido contato com a obra de Mondrian foi completado pela descoberta do grupo De Stijl, que propôs ideias de construção coletiva sob princípios como o lugar da cor ativa na relação entre espaço e tempo. Na teoria arquitetônica do grupo, o rompimento da caixa fechada (os muros etc.) acaba com a dualidade interior-exterior. Clark aspirou à arquitetura experimental em “Interior” (1955), invertendo toda tradição, pois não é o muro que recebe o quadro, mas é a pintura como práxis material que devora a parede e toda a arquitetura.
Quebra da moldura
A partir da história social da arte, a tela “Quebra da moldura” (1954), de Lygia Clark, tomou posição e se converteu num ponto extremo da pintura no Brasil em sua condição de espaço concreto. Expor a quebra do marco, que ainda apresentaria seus vestígios (as faixas pretas), e incorporar sua área física já com uma superfície de cor integrada ao campo visual. A operação de Clark convoca o entendimento do quadro como um corpo íntegro que dispensa o que lhe fora agregado historicamente – a moldura – na condição de status social e o isolamento político da arte no mundo. Quebrar significa abolir a moldura até a própria dissolução de suas memórias. Nada mais separa o fato pintura do mundo; nenhum outro traço, para além do signo material da pintura, a ela se adere. Desde a quebra da moldura, em 1954, Clark não fez mais pinturas, desenhos nem esculturas, pois não há qualquer interesse em rompimento das fronteiras entre os meios. O espaço se tornou a investigação central e consistente sob o mais cristalino desdobramento.
Linha orgânica
A “Descoberta da linha orgânica” (1954) introduz uma questão concreta que é entender o sentido da estreita fresta entre a tela e o que foi moldura. Esse lugar ativa o espaço concreto, articula suas partes, por isso sua denominação como linha orgânica. É orgânica por se o espaço preposicional entre; é o vazio que articula o discurso planar da cor; é o lugar do ar que respiramos que integra e articula as zonas concretas da pintura. O que se havia rompido em “Quebra da moldura” não se dispersa nem produz fragmentos ou cacos, mas paradoxalmente reivindica e produz uma totalidade plástica precisa e coesa como também em “Descoberta da linha orgânica”, seu par conceitual. A pintora dissolveu a instituição do “quadro”, reduzindo à realidade problemática de superfície e plano em sua objetualidade.
Superfície modulada
As primeiras “Superfícies moduladas” ainda operavam sob a memória do encaixe (como na relação abolida entre moldura e tela) e buscavam a formação de objeto uno. No entanto, as referências à moldura nas “Superfícies moduladas” (1955 a 1956) passarão a minguar para que se esclareça a articulação pelas linhas orgânicas na modulação da superfície pictórica. Serão planos autonômicos (em madeira) que a artista submete à conjunção justapositiva que forma o campo pictórico e suas variações espaciais. O discurso da pintura recorre ao verbo “modular” para modelizar dimensões e intensidades de relações cromáticas. O jogo de percepções se ativa pela presença integrada das funções das linhas orgânicas de coesão formal dos planos e acentua a harmonia da superfície construída por formas seriais. A superfície se uniformiza pela cor chapada, sem deixar traços do pincel ou gestos na aplicação da tinta industrial.
Planos em superfície modulada Série A
A artista agora desenvolverá uma nova economia formal, com formas mais homogêneas e equilibradas. Os “Planos em superfície modulada” (1956) ressaltam a dimensão puramente planar, descartam a memória da relação quadro/moldura. A pulsão de constituir espaços ordena os planos-placas que se atraem e se ajustam para a formulação de uma unidade espacial, cuja coesão se dinamiza pela linha orgânica. Se desde as “superfícies moduladas” de 1955 não haverá desenho geométrico sobre o fundo, com os “Planos em superfície modulada” praticamente não há cor – a artista se reduz ao preto, branco e cinza, eventualmente opera uma cor primária.
Planos em superfície modulada Série B
Na segunda série dos “Planos em superfície modulada” (1958) a ambiguidade espacial em Clark se depura pela redução da imagem com novo olhar sobre o preto e branco do suprematismo de Malevitch e sobre o espelhamento das formas de Josef Albers. A polaridade radical e reduzida, integrada e ativadora, da Planos em superfície modulada. Série B nos. 1 e 2 (1958) enuncia uma primeira superação da assimbolia da forma, pois seu encaixe aponta para relação entre Um e o Outro, entre o feminino e o masculino, entre noite e dia.
Espaço modulado
O “Espaço modulado” (1958) de Lygia Clark retoma o plano único como novo desafio lógico, definido nas dimensões prevalecentes de 90 x 30 cm, o que equivale à modulação por três quadrados de 30 x 30 cm subdivididos de diversos modos. Sobreposta a divisão por malha, prevalece a ideia de modulação em três quadrados, por sua vez atravessados por linha horizontal, vertical ou diagonal de que resultam duas partes dentro de um dos quadrados. Por vezes, ocorre a modulação mais surda, sem a loquacidade da linha orgânica. Há divisões em planos triangulares ou planos horizontais. São traçados sutis de linha branca ou de linha cega, formada por mossa no plano-suporte. O olhar varre o espaço em movimento vertical, apreende a totalidade do espaço e de seus problemas, sem desvios por quaisquer ritmos para os lados.
Unidade
Uma “Unidade” é uma síntese espacial e temporal máxima no espaço-tempo de Lygia Clark. Sua dimensão de 30 x 30 cm é calculada para a percepção integral num único relance. É, portanto, unidade percepcional que ajusta espaço e tempo como um fenômeno indivisível. A superfície quadrada é pensada para constituir-se também num único ato de conhecimento. Tudo se percebe e apreende num átimo. A consecução do espaço unitário em Clark é síntese rigorosa, pois avança como economia com relação aos excessos do programa De Stijl (cores, divisões espaciais, etc.) para reduzir a uma questão algébrica da forma, a um só episódio de leitura e à economia do esforço do globo ocular.
Ovo linear
O neoconcretismo deu o salto semântico para constituir seu “princípio da simbolização” da forma com o “Livro da Criação” (1959), de Lygia Pape, e na passagem do quadrado da “Unidade” para o círculo do “Ovo linear” (1958, 33 cm), de Lygia Clark. O círculo preto tem um halo de linha-luz branca periférica incompleta como uma falta e abertura, ponto em que se situa a força da forma. “Ovo linear” é o momento primordial: o ser nascendo compreende a definitiva separação entre o eu e o outro. A falha da linha – isto é, a falta, é o ponto de contágio do plano com o mundo, aludindo a situação solitária do nascituro. O “Ovo linear” é tenso em Clark, podendo ser lido como alusão ao parto, tendo ela gerado três filhos. Lygia Clark enuncia sua geometria feminina na investigação da interioridade do sujeito.
Contra relevos
Na dimensão empírica da construção do “Contra relevo” (1959) de Lygia Clark, os planos em madeira pintada aportam sua espessura corpórea; sobrepostos, eles recusam a simbiose planar entre sua condição de objeto e a parede, alternando entre revelação e encobrimento de si mesmos. Alguns planos são pretos com bordas em branco e vice-versa. No entanto, sua arquitetura folheia espessuras planares e estruturas diagonais, para dinamizar sua posição no mundo, quando um de seus ângulos ocupa o ponto superior da estrutura. Na vista frontal vêem-se apenas planos pretos e brancos, reivindicando o movimento do sujeito em torno do objeto. Clark amadureceu os princípios da historicidade do neoconcretismo. A arte não é a figuração plástica de princípios geométricos, mas é o desenvolvimento de problemas plásticos já legados pela própria modernidade histórica.
Casulo
A vontade material de Lygia Clark é agora definida por necessidades construtivas do espaço. Dessa forma, recorreu a maleabilidade do metal para as operações do “Casulo” (1959): o plano sobre a dobra, avança sobre o lugar e delimita, não sua zona, mas seu modo de ser espaço real em si. O objeto interrompeu a mimese da parede onde se situa. O “Casulo” é potencialmente a dobra da interioridade do sujeito. Remete, no ciclo vital de alguns insetos, em um estágio radical de transformação. Necessita de exploração por parte do observador para compreensão do polígono que se desdobra e redobra em planos triangulares para além de seu perímetro quadrado.
Bichos
Depois dos “Casulos”, ocorre a eclosão espacial dos “Bichos” (1960), como a polpa que emerge adulta. O “Bicho” surgiu como núcleo articulado de planos e dobras. Com a definição do uso do metal para solucionar a estruturação da nova dinâmica do espaço, Clark, para os “Bichos”, recorreu ao alumínio por sua revolucionária leveza estratégica. Os primeiros espécimes eram estruturas rígidas, formadas por planos e dobras, que não se moviam, como o “Bicho ponta” (1960). Mais amadurecido, o “Bicho” tornou-se uma estrutura móvel formada por placas de metal articuladas entre si por dobradiças. O “Bicho objeto vindo de um mundo de fora” (1961) enuncia a demanda de forças extrínsecas da manipulação do objeto pelo sujeito da recepção. “Na relação que se estabelece entre você e o ‘bicho’ não há passividade, nem sua nem dele. Acontece uma espécie de corpo a corpo entre duas entidades vivas”, celebra Clark. No plano da recepção da arte, a conversão do espectador em agente do “Bicho” é o ponto de viragem em que emerge o sujeito neoconcreto. Malgrado os títulos dos “Bichos”, já não cabe pensá-los em termos de representação, abstração ou forma. Os “Bichos” passaram a oferecer múltiplas variações estruturais e possibilidades de movimento.
Obra mole
Despois dos “Bichos”, as “Obras moles” (1964) representam outro salto na direção do vir a ser em lugar do ser, e se põem em permanente estado de emergência. As “Obras moles” são formadas de material industrial emborrachado para piso. O corte planejado nessa matéria introduz formas que se desdobram e possibilitam o enganche do objeto sobre superfícies e volumes, permitindo a adaptação do seu estar no mundo. Tudo é devir e mais que nunca a obra exerce a vontade material.
Trepantes
Na mecânica de Lygia Clark, seu foco deslocou-se das articulações da forma para a resistência dos materiais e para seu jogo de tensões com os “Trepantes” (1965). O sujeito participante de um “Trepante” infringe esforço mecânico sobre as faixas de metal que se torcem e retorcem em torções, se dobram e desdobram como uma estrutura fluida, resistem e cedem, se resvalam e se retêm em seu acidentado contato com o mundo. Sob a tensão do material, ou mesmo em repouso, o objeto sempre promete um turbilhão barroco de movimentos, no deslocamento temporal de seu percurso. Na virada linguística de Clark, nota-se que o título “Trepante” também enseja uma repercussão onomatopaica. Agarra-se a pessoas, árvores ou coisas, um corpo vibrátil trepa, libidinoso como no sentido do termo no português coloquial.
Objetos relacionais e Objetos sensoriais:
Um “Objeto relacional” não tem “especificidade em si… é na relação estabelecida com a fantasia do sujeito que ele se define”, afirma Lygia Clark, “ele é alvo da carga afetiva agressiva e passional do sujeito, na medida em que o sujeito lhe empresta significado, perdendo a condição de um simples objeto para impregnado, ser vivido como parte viva do sujeito”. Em “Objeto relacional em contexto terapêutico” Clark afirma que o processo se torna terapêutico pela regularidade das sessões, possibilitando a elaboração fantasmática vinda das potencialidades do objeto. Os “Objetos relacionais” não derivam para o fetiche, porque, engajado em ação terapêutica, não há possibilidade de ação no sistema da arte, no museu, mercado, crítica ou história. Clark assume o extremo de seu projeto: declara-se não artista.
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Assinalar em: Arte Brasileira, Arte Contemporânea, Exposições, Galerias, Pinturas, Esculturas, Desenhos, Objetos, Rio de Janeiro.
Nova representação
01/jun
A Bergamin & Gomide, Jardins, São Paulo, SP, anuncia a representação do artista Alex Červený. Com cerca de 40 anos de carreira, Alex Červený (1963) faz pintura, gravura, desenho e ilustração. O trabalho de Červený alude a um mundo fantástico, no qual se misturam personagens bíblicos e mitológicos, fauna, flora e paisagens surrealistas. A relação com o texto e narrativas de todos os tempos – desde a antiguidade até as telenovelas – e com o corpo é latente na produção do artista.
Bruno Miguel na Kogan Amaro
A Galeria Kogan Amaro, São Paulo, SP, exibe de 05 de junho até 17 de julho, “A Beautiful Image”, a nova exposição de Bruno Miguel.
Texto de Ulisses Carrilho
Smile at least / You can’t say no to the Beauty and the Beast
David Bowie
Palavras ou imagens são sempre provocações. O inconsciente não cessa de se inscrever: o fabulado e o imaginado se fazem presentes a cada salto dado pelo sujeito. No fluxo contrário, o real não se deixa inscrever – esgueira-se, escapa e acontece no mundo. Faz-se perceber na vida da matéria, apresenta-se como fenômeno sentido. Na pintura de Bruno Miguel, entre os códigos dos quais lança mão e as fartas doses de cor, em tinta e objetos, sobre a superfície de suas pinturas, há também uma dupla ocorrência: de maneira flagrante, percebemos um artista que apresenta hipóteses à história da pintura e, concomitantemente, a um regime das imagens que não acontece apenas no entorno do objeto de arte, mas no campo ampliado das visualidades. O título da mostra, tomado por empréstimo da inscrição na pintura que abre a exposição, deixa essa relação evidente: falemos sobre a imagem.
Muito embora o artista perambule por referências biográficas em seu trabalho, essa vontade não é memorial, não resulta do desejo de versar sobre um mundo particular do indivíduo. Parece lembrar que a matéria primeira da arte se constitui justamente por um salto entre uma imagem que é criada e outra que é percebida. Bruno Miguel é professor na Escola de Artes Visuais do Parque Lage há mais de uma década e é flagrante o seu interesse em elaborar uma pesquisa poética que investiga a formação de um certo olhar: o artista busca apurar uma sensibilidade em relação às imagens que já estão no mundo. Em outra oportunidade, seria interessante apurar essa hipótese à luz de sua série “Marina Ajuda Bruno”, que merece atenção e oportunidade de exposição, pois levanta uma discussão urgente que reajusta não apenas a ideia de função na arte, mas também a problemática noção da qualidade. Será que, frente a uma sociedade corrompida pelo excesso, pela saturação, pelo espetáculo e pela excludente e elitista ideia de que haveria, a priori, um “bom gosto”, as visualidades não apuradas pelo sistema artístico mereceriam menor oportunidade de investigação?
No discurso do artista, nota-se insistentemente ganas de versar sobre um mundo externo a ele: sobre imagens que o circundam, imagens de objetos que coleciona, mas que estão também impregnadas no seu corpo. Tais imagens não são convocadas pelo artista por um simples interesse de representação das mesmas no campo pictórico. Bruno Miguel explora, por meio da pintura, as imagens de um mundo fraturado pela desintegração; acelerado pelo entretenimento; enganado pela promessa da globalização.
Muitos dos objetos impregnados nas camadas de tinta sobre tela ou nas resinas que aludem às diferentes configurações de plásticos-bolhas são objetos de consumo: patches comprados em larga quantidade, indiscriminadamente, em plataformas de compra na Internet. De origem militar, usados desde os anos 1800 na Inglaterra, para fins bélicos, os patches começaram a se popularizar na década de 1930, como forma de identificar exércitos e patentes – questões da ordem de pertencimento. No final dos anos 1950 e nos primeiros anos da década de 1960, foram adotados por “adolescentes rebeldes” na baila do movimento MOD, que teve origem em Londres, na Inglaterra. O símbolo usado pelo movimento, um alvo, é originário do símbolo usado nos aviões da RAF, braço aéreo das forças armadas do Reino Unido, durante a Segunda Guerra Mundial. E foi assim que eles foram introduzidos na indumentária do rock’n’roll, onde se popularizaram na cultura popular. Rapidamente os patches começaram a ser veículos para expor ideias, posição política e amor por bandas. Os pequenos objetos são espécies de escudos que operam culturalmente, gerando pertencimento e denotando ou confrontando identificações. Tais emblemas são partes fundamentais dos trabalhos que vemos na mostra.
Em “Against Interpretation”, livro de Susan Sontag, no seu ensaio “One Culture and the New Sensibility”, encontro linhas em ricochete à profusão dos tais caminhos concomitantes que dão corpo às pinturas de Bruno Miguel. A arte é compreendida como um instrumento que modifica nossa consciência e organiza novos modos de sensibilidade. Viveríamos, segundo a autora, uma asfixiante pressão pela interpretação, que aniquila nossa sensibilidade a partir de uma visão causal, lógica, reacionária e interpretativa do mundo. Tal ideia cientificista, segundo algumas das hipóteses de Sontag, invadiram o campo artístico-literário na modernidade. Como resistir à lógica e confiar naquilo que sente o indivíduo perante um estímulo? É possível superar a ideia de gosto e gozar com o que o corpo vê, percebe e sente?
Na série de pinturas que vemos, o artista oferece, em telas, campos cromáticos repletos de referências a um mundo que, apesar de não ser externo à arte, é frequentemente subestimado por artistas, em nome de uma sofisticação e de um apuro intelectual. Com sorte, a pintura de Bruno Miguel insubordinadamente resiste a essa ideia, instaurando um campo onde é possível elaborar outras hipóteses, outrora já afirmadas pelos teóricos da cultura: uma ideia de cultura mais generosa, encharcada de complexidade, pouco binária. As várias manifestações da cor e da forma eclodem na tela sem a pretensão de confirmar a tradição, mas de atualizar os problemas nela elaborados. Suas estratégias artísticas, no entanto, também não desconfiam da pintura. Ao contrário disso, o artista ostensivamente confia nesse procedimento.
Não à toa, este texto começa pela inscrição e pela irrupção daquilo que não se deixa inscrever. Nas inscrições pintadas pelo artista, ele constitui imagens. As palavras apresentam-se como elementos visuais que integram, de maneira fundamental, a composição dos trabalhos. Sontag, nos anos 1960, colaborou para a compreensão de que a arte produzida naquele momento valia-se de elementos produzidos pela sociedade de consumo menos por um simples interesse visual, mas sobretudo para criar a oportunidade de que nós, o público, possamos reconfigurar nossos próprios critérios preconcebidos a respeito do que pode ou não ser considerado arte. Não há outro modo de terminar este texto: mas, afinal, o que é a beautiful image?
Sobre o artista
Nasceu no Rio de Janeiro, 1981.Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Bruno desenvolve desde 2004 sua pesquisa em torno da construção e da representação da paisagem na contemporaneidade, atuante em diversas linguagens, o mesmo elege a pintura como tema principal de sua rotina obsessiva de produção. Nos últimos anos as questões acerca da paisagem começaram a dar lugar a uma investigação maior da pintura como linguagem e suas interfaces na vida cotidiana contemporânea. Mas acima de qualquer retórica que Bruno desenvolva para justificar suas opções, a verdadeira força de sua pesquisa está no trabalho. Não na obra em si, mas na labuta do atelier, onde sua curiosidade e inquietação fazem com que sua pintura se mantenha em transformação. Onde suas compulsões buscam erros ansiosos por soluções imprevisíveis, tão generosas que se escondem por trás do deslumbre banal das imagens fáceis. Sua pesquisa é um tipo de pós-pop periférico, sempre relacionando alta e baixa cultura. Uma maquiagem vulgar e exuberante que superficialmente disfarça sua condição de eterna busca pela beleza. Não da pintura, mas do pintar.
Art Basel OVR: Pioneers | Mira Schendel
29/mar
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Premiação
02/dez
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