A BOLSA DE ARTE tem o prazer de apresentar o espetáculo “Lygia”. Monólogo de Carolyna Aguiar com direção de Bel Kutner e Maria Clara Mattos, que também assina a dramaturgia desenvolvida a partir dos diários de Lygia Clark. No mesmo período inaugura a exposição individual da artista com curadoria e texto de Felipe Scovino.
“Um mergulho profundo no mundo interior de Lygia Clark. Como seus sonhos, suas angústias, seus desejos e sua relação consigo mesma levaram a artista a tantas obras geniais. Sem sobrenome, sem crítica, uma mulher à frente de seu tempo. Lygia, simplesmente Lygia. ”
Espetáculo: 07 de abril a 28 de maio
Quintas e Sextas às 20h – Sábados às 18h
Ingressos à venda no Sympla. Sujeito a locação.
A obra de Lygia Clark é extremamente complexa, carregada de significados subterrâneos nem sempre explícitos. Mesmo assim, sua estética é direta, quase simples. Bel Kutner e Maria Clara Mattos têm esse subtexto como meta de encenação. Sim, encenação, é como preferem tratar o espetáculo Lygia. Sem o comprometimento do palco, sem a rigidez do teatro, sem o silêncio e a pura apreciação de uma exposição. A ideia é mergulhar no universo interno desta artista, buscando usar as linhas retas, as curvas e os objetos terapêuticos criados por ela numa interação com o público. Ou seja, Lygia Clark na língua que ela buscou para suas manifestações artísticas: o corpo, a obra de arte e sua interação com o público. Mais do que um espetáculo, esta encenação é uma experiência estética, exatamente o que a artista emprestou à própria obra: vida
A dramaturgia
Maria Clara Mattos
Lygia Clark sempre buscou a interação entre o artista e o público. Da quebra da moldura à saída da parede à Estruturação do Self, o que esta mulher à frente do seu tempo propôs – literalmente – foi a comunhão entre a arte e a vida. O monólogo Lygia. é um convite ao vasto mundo interior desta mulher. Seus sonhos, suas dores, suas alegrias. Não da artista plástica, não da terapeuta, mas da Lygia, pura e simplesmente. Alguém que fez dos próprios abismos o caminho de contato com o outro, alguém que acreditava que o potencial artístico humano estava no desvendamento dos próprios fantasmas. De Caetano Veloso a Ivanilda Santos Leme, profissional do sexo e presidente da ONG Fio da Alma; de artistas consagrados a pessoas comuns, o que Lygia queria era o contato entre os corpos, encontros artísticos e curativos. Buscava, com seu estudo, provar que a arte era um sentimento, não um objeto de apreciação. Por tudo isso, em algum momento, o universo das artes plásticas deixou de ser capaz de classificar sua obra, apresentá-la e muito menos vendê-la. Sem o reconhecimento do universo terapêutico, que também não encontrou meios de enquadrar seu trabalho, Lygia começou só e terminou só. Talvez sem imaginar a importância que teria tantos anos depois de sua morte, talvez sem ter certeza de que faria parte da história artística do país, jamais desistiu de sua pesquisa artística e influenciou muita gente mundo afora. Através de seus escritos e diários, nossa intenção é experimentar ser essa artista que usou a própria angústia como material de pesquisa. Angústia, material tão comum aos seres humanos quanto os sacos de laranja e de cebola, as pedras e os sacos plásticos, as luvas e as tesouras, o barbante e a baba, matérias-primas da vida banal como caminho de tradução da alma artística de cada um de nós. Pela arte de criar. Lygia foi experimentação estética do começo ao fim. Ao ser encontrada morta, sentada na poltrona, vestida e penteada diante de uma televisão desligada, como fazia todos os dias, uma pergunta se impôs naturalmente: até na morte ela foi obra de arte? Cremos que sim. Evoé!
Equipe
Dramaturgia: Maria Clara Mattos (a partir dos diários de Lygia Clark)
Direção: Bel Kutner e Maria Clara Mattos
Atuação: Carolyna Aguiar
Cenografia: Estúdio Mameluca | Ale Clark e Nuno FS
Figurino: Andrea Marques
Iluminação: Belight | Samuel Betts
Coord. de equipe técnica e operação de luz: Ana Kutner
Assistência/montagem: Leandro de Cicco e Rodrigo Sabino
Visagismo: Alessandra Grochko
Preparação Vocal: Rose Gonçalves e Sonia Dumont
Exposição: Curadoria e texto Felipe Scovino
Relacionamento colecionadores: Renata Mindlin
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Produção Executiva: TABA | Taís Alves
Idealização: Associação Cultural Lygia Clark | 8 Tempos
Parceria: OM.art
Realização: Bolsa de Arte
Exposição: 08 de abril a 28 de maio
11h às 19h – Entrada gratuita.
BOLSA DE ARTE – Rua Rio Preto, 63 -Jardins – SP
+55 (11) 3062 2333 – sp@bolsadearte.com
A exposição
A linha orgânica de Lygia Clark por Felipe Scovino. Essa série de pinturas consiste em placas de madeira onde criava, com a ajuda de um bisturi, sulcos sobre a superfície. Recortando o plano, concebia campos de cor que possuíam um efeito ótico no qual figura e fundo se embaralhavam. Essa fenda ou vazio que criou sobre a superfície da madeira foi chamada por ela de “linha orgânica”. Essa ideia de uma linha que não tem dentro nem fora, começo ou fim, interior ou exterior, e que deseja sair do plano em busca do espaço, se diversifica em inúmeras aparições e formas. Ela atravessa a obra de Lygia desde as Superfícies Moduladas e os sulcos das paredes e janelas da Maquete para Interior (1955), passa pela fase neoconcreta na qual a linha, como um feixe de luz, cria uma relação ambígua sobre os limites da moldura como são os casos de Espaços Modulados e Unidades (1958-59), cruza suas experiências sensoriais enquanto foi professora na Sorbonne (c. 1972-76) e chega à sua última fase de trabalho, a Estruturação do Self. A linha, por exemplo, é constantemente dobrada e “quebrada” nas articulações que o espectador promove ao movimentar o Bicho (1960-64); já a estrutura em fita de Moebius do Trepante (1965) torna flexível o antes rígido metal que dá forma à obra; a linha orgânica é sugada pelos participantes da Baba Antropofágica (1973); ela é esticada e esgarçada nas experiências das Estruturas Vivas (1969); ou ainda é visível nas costuras realizadas para unir os macacões monocromáticos da proposição Nostalgia do Corpo (1970), um diálogo entre dança e artes plásticas ainda pouco conhecido pelo público.
A participação de Lygia em grupos artísticos de vanguarda no Rio de Janeiro, como o Grupo Frente (1954-56) e o neoconcreto permitiu que ela tivesse uma troca intensa com outros artistas que são, hoje em dia, referências para a arte, como Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Pape e Hélio Oiticica, seu grande interlocutor. Esses artistas, reunidos em torno do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e influenciados pelas trocas com os críticos de arte Mário Pedrosa e Ferreira Gullar, que se voltavam para estudos sobre a Gestalt e a fenomenologia, construíram um campo estético que deixaria um legado substancial. Romperam os limites entre pintura e escultura, se colocavam numa postura contra o dogmatismo da arte concreta, desejavam a experimentação de materiais e meios assim como propunham a participação ativa do espectador em proporções que já colocavam o termo performance em desuso. Em 1968, Lygia escreveu o texto “Nós somos os propositores” e afirmou que “enterramos ‘a obra de arte’ como tal e solicitamos a vocês para que o pensamento viva pela ação”. Ao contrário da performance quando o corpo do(a) artista é presente e elemento vital para a sua realização, o corpo de Lygia não é condição sine qua non para a realização de suas proposições. O que se apresenta é a oferta de uma proposição ao público, algo que colocava em xeque não só questões mercantis e a aura do objeto de arte mas acima de tudo a relação, até então, muito bem definida entre artista, obra e espectador.
Com o fim do neoconcretismo, Lygia se lança mais radicalmente em direção aos Objetos sensoriais, aliás, muito presentes no monólogo. Sua segunda estada em Paris (1968-76) e o convite para ser professora na Sorbonne acelera esse processo do corpo como meio de uma prática artística. A obra passa a ser não exatamente um objeto mas a forma como nos relacionamos com a experiência provocada pelas suas proposições. Essas, muitas vezes coletivas, são intermediadas por elementos da natureza ou objetos precários que são alusivos ao corpo. Ao escolher sacos plásticos, água, bolas de ping-pong, tubos de borracha, elásticos, pedras e conchas como objetos mediadores, Lygia expunha um processo dialético. Afirmo isso pois ela invariavelmente queria que o público experienciasse as potencialidades de cada material a partir de suas contradições (por exemplo, a relação entre cheio e vazio, pesado e leve, mole e duro que ocorria ao final de uma sessão da Estruturação do Self, quando o paciente/cliente – dualidade usada pela própria Lygia – era convidado a estourar um saco plástico cheio de ar), condicionando, assim, uma ideia de corpo regido constantemente por instabilidades. Em Respire Comigo (1966), os polos de um tubo de borracha são reunidos, apertados e finalmente o tubo é constantemente pressionado emitindo um som próximo ao da respiração. Já em Pedra e Ar (1966), a pedra pousada sobre um saco plástico cheio de ar é suspensa pela pressão das mãos do propositor sobre o saco. São experiências de um corpo metaforizado muito conectado não só a ideia de fragilidade mas também de angústia, um sentimento que era muito característico de Lygia quando descrevia a sua relação com a criação das obras (“era como um parto”). É importante compreender que o corpo problematizado por Lygia em suas experiências é também produto do contexto de seu tempo. Maio de 1968 e a discussão sobre estruturas e hierarquias de poder; ditaduras na América Latina e guerras pela independência na África; Guerra Fria; Cortina de Ferro; movimentos feministas e todos os outros que reivindicavam direitos civis; Tropicalismo; entre uma série de outros eventos culturais, políticos e sociais que formavam um encadeamento de práticas que nos ajudam a entender o lugar das discussões de Lygia naquele instante assim como a elaboração de uma ideia de corpo que demandava liberdade.
De volta ao Rio de Janeiro em 1976, Lygia se volta para a Estruturação do Self. Atendendo em sua casa/consultório, seus clientes/pacientes eram convidados a deitar-se em um colchão de plástico preenchido por bolinhas de poliestireno e cercados pelo que qualificou de Objetos relacionais, que podiam ser almofadas preenchidos com areia, objetos feitos com meia-calça, saco plástico com água, dentre outros objetos. À medida que narravam seus traumas, Lygia constituía em texto esses relatos, os chamados “casos clínicos”. Ao longo das sessões, Lygia identificava os “buracos” ou vazios no corpo e os preenchia com os objetos relacionais. Parafraseando Suely Rolnik, em “Uma terapêutica para tempos sem poesia”, essa ação representava simbolicamente o fechamento de fissuras, a reposição de partes ausentes, a solda de articulações desconectadas.
A exposição, com caráter panorâmico, se mistura ao monólogo não como forma de materializar aquilo que é narrado ou descrito por Carolyna, mas como uma dobra. Ambos se unem e se entrelaçam como forma de criar feixes e dinâmicas a partir da obra de Lygia. A potência, visceralidade e sensibilidade de Carolyna ecoam na exposição que, por sua vez, mantém ativa a memória e o legado de Lygia.