O espaço carioca da galeria Nara Roesler, Ipanema, Rio de Janeiro, RJ, apresenta série inédita de pinturas de Tomie Ohtake. O acervo reunido exibe a alta qualidade e vitalidade da consagrada artista, uma festa de cor para os olhos.
Tomie Ohtake, de branco.
Texto de Paulo Miyada
Algum dia, em algum lugar, alguém teve que sussurrar pela primeira vez, talvez um pouco envergonhado, sem muita convicção, que achava curioso como a figura representada na Monalisa de Leonardo da Vinci parecia estar sorrindo, mas talvez não estivesse… É impossível saber como isso se deu, mas a confusão desse sincero personagem anônimo da história da arte alastrou-se sem limites e aderiu à obra de tal forma que hoje é impossível olhar para a Monalisa – ou mesmo para uma de suas milhares de reproduções – sem espiar o seu sorriso ambíguo.
Este é um exemplo anedótico do quanto as interpretações e dúvidas do público podem aderir a uma obra de arte até o ponto em que não podem mais ser dissociadas ou esquecidas. Ao mesmo tempo, é uma consequência talvez involuntária do enfrentamento rigoroso de Leonardo da Vinci com o problema dos contornos para a visão humana. O artista sabia que as coisas a rigor não possuem uma linha limítrofe na sua borda, mas também sabia que a visão contava com uma série de recursos para delimitar os contornos dos objetos. Não tropeçamos nas coisas e sabemos aferir suas formas porque contamos com a paralaxe entre nossos olhos e com a diferença de plano focal entre os objetos para compreender sua volumetria e limite, mesmo quando não os circundamos para verificar nossas impressões. Os contornos, portanto, não existem de fato, mas são, mesmo assim, visíveis para o homem. Como a pintura poderia lidar com isso? Como ela definiria a forma dos objetos sem simplificar a representação adicionando linhas de contorno ao redor de cada figura?
Para Da Vinci, a solução passava pelo sfumato, técnica que tornava os limites entre os volumes pintados razoavelmente indistintos. Na sua pintura, os campos de cor dissolviam-se uns nos outros, suprimindo assim o choque seco entre as figuras pictóricas e dando ao olho do espectador a tarefa de – assim como faz o tempo todo – inferir a posição dos contornos onde na verdade eles não existem. Assim como o mundo real, a pintura do Renascimento exige que o olho do espectador “pense” para interpretar seus limites. E assim, o sorriso ambíguo da Monalisa emerge da indefinição das bordas da pintura de Da Vinci – que faz com que duvidemos se está ali a continuação da linha da boca em animação ou a sombra discreta da bochecha que pende sobre a boca plácida.
A fascinação com o sorriso não é apenas uma confusão elevada a leitura recorrente acerca da obra mais célebre do Renascimento – é o resultado do encontro entre o olhar imaginativo do público com a pesquisa pictórica do artista. Apesar de parecer uma anedota, essa história vem à mente quando pensamos na produção recente de Tomie Ohtake. Pois, diante das novas pinturas, a todo tempo o olho se surpreende com o que ora apreende e o que ora lhe escapa. Encontramos, por exemplo, uma tela quadrada, toda preenchida por texturas feitas com massa pigmentada, dentro da qual enxergamos uma forma arredondada, mais ou menos quadrada, inclinada na composição. Viramos um pouco para o lado e olhamos de novo para a tela, agora para enxergar um volume comprido mais ou menos oval, inclinado do canto direito para o canto esquerdo da tela. Então, um passo atrás, mais um desvio de olhar, e não reconhecemos mais nenhuma forma proeminente, apenas uma tela branca texturizada. Dois passos à frente e, daí, a gestualidade da tela fica ainda mais em evidência e, pelas sombras projetadas entre os volumes de tinta, é possível adivinhar inúmeras figuras – como faz uma criança que enxerga formas nas nuvens. Frente a uma mesma tela, portanto, o observador pode ficar em dúvida sobre o que está vendo, oscilar entre um polígono e uma mancha, como oscila aquele que olha para a boca da Monalisa. A diferença é que Tomie Ohtake não está revisitando o sfumato, sua investigação é outra.
Desde que completou cem anos, em Novembro de 2013, a artista japonesa radicada em São Paulo tem experimentado pinturas monocromáticas, em geral brancas. Pinturas de branco, seria melhor dizer – da mesma forma que os franceses dizem “d’eau”, “du pan”, “du sable”. Não são formas tingidas com pigmento branco, nem são somas de pedaços e elementos brancos sobrepostos, são gestos pictóricos feitos do próprio branco, como uma grande massa cromática uniforme que se acumula e espalha pela tela. A areia e a água são substâncias indivisíveis: não faz sentido falar em “uma água”, mas em uma dada quantidade delimitada por um recipiente: “um copo de água”. Da mesma forma, as pinturas novas de Tomie são “telas de branco”, ou “de vermelho” e “de azul” nas obras mais recentes. Na primeira exposição realizada em comemoração ao centenário da artista no Instituto Tomie Ohtake, Agnaldo Farias e eu cogitamos que em toda sua produção desde meados dos anos 1950, Tomie Ohtake esteve disputando com o labor pictórico a possibilidade de abrir novas veredas para a investigação das cores, dos gestos e da materialidade. Esses três polos, tão caros a quase todos os pintores, converteram-se para ela em um foco constante, nunca eclipsado por manifestos, temas ou até pelo nome das obras – sempre “sem título”. Sua pintura buscou maneiras de extrapolar o campo do já conhecido no que tange à cor, ao gesto e à materialidade: nos anos 1960, subverteu a regularidade da geometria abstrata ao usar papéis rasgados à mão como modelo para a pincelada; em 1972, produziu litogravuras até hoje chocantes em suas combinações cromáticas psicodélicas; ao longo da década de 1980, trocou a tinta a óleo pela acrílica, a fim de explorar transparências e veladuras liquefeitas; nos anos 2000, descobriu modos de dar às linhas feitas pela mão a espacialidade e movimento das esculturas tubulares.
Pois bem, por que essa buliçosa pesquisa teria que se interromper e deixar-se fixar em uma equação estável? Tomie Ohtake segue procurando formas de recombinar gesto, cor e materialidade. Agora, utiliza a massa corpulenta e maciça para ganhar corpo e dobrar-se sobre si mesma em movimentos que não são bem pinceladas e tampouco espalhamentos por espátula. São ondas que tremulam sobre a tela, matérias convulsionadas em suspensão. Vez em quando, há um sutil desnível na espessura dessa massa, ou então é a direção dos gestos que varia: o resultado é que, delicadamente, emerge a sugestão de uma linha. Vejamos, não se trata de uma mudança de tonalidade ou da diferença entre dois volumes, mas de dezenas de fragmentos de branco que se agitam apenas o suficiente para desafiar o nosso olhar. E, se mudamos de foco, a linha some. Se trocamos a incidência da luz, ela volta a aparecer.Em certo sentido, trata-se de uma nova visita ao conjunto de pinturas em tons de branco que Tomie Ohtake fez em 1959, parte da série que Paulo Herkenhoff chama de “pinturas cegas”. Então, ela preparava um fundo bastante escuro e, com os olhos fechados, distribuía amplas pinceladas mais ou menos erráticas com tintas à óleo muito luminosas. Entre o que ficava velado pelo branco e o que escapava nas brechas entre as pinceladas, aparecia uma profundidade assombrosa, jogo sensual entre luzes e sombras. Hoje, quando a artista explora a plasticidade da massa pigmentada, retorna a possibilidade do olhar mergulhar na alvura das telas, mas não encontrará as profundezas de outrora, senão passeará pela superfície e pelas sombras geradas por sua própria volumetria e, justamente aí, no intervalo de alguns centímetros, encontrará as pistas para adivinhar seus desenhos.
Os cegos agora somos nós, que precisamos apalpar a pintura com a ponta dos olhos. A pintura, então, ganha sentido háptico, quer dizer, qualidade tátil. Não é algo inédito na história da pintura, mas o motor de Tomie Ohtake não está nesse tipo de novidade: trata-se de um jogo com o espectador que abre novas possibilidades de experimentação pictóricas para uma obra que segue se renovando há mais de seis décadas, e isso mobiliza a artista a continuar trabalhando. Há ainda uma surpresa: até algo tão novo para Tomie Ohtake não poderia ser experimentado por uma via apenas, por isso, ela iniciou, há alguns meses, testes sobre o que acontece com seus relevos com a entrada da cor. Começou pelo vermelho e pelo azul. É claro que alcançou resultados diferentes: a vibração rubra lhe permite arriscar desníveis mais abruptos, pois sua luminosidade abrasiva acaba minimizando a percepção das diferenças volumétricas . Já a densidade azul lhe dirige à transparência, alcançada com camadas mais finas de massa. É um novo começo, material para três das telas aqui apresentadas e, possivelmente, assunto para mais um ano de investigações vindouras.O ateliê, que também é casa, de Tomie Ohtake deverá ainda produzir mais desafios ao olhar de quem quiser ver.
Até 22 de novembro.