A exposição “Pietrina Checcacci – Nuvem” está em cartaz na Galeria BNDES, Centro Rio de Janeiro, RJ. Trata-se de um momento singular na carreira da artista que, através desta exposição, exibe uma panorâmica de seus trabalhos distribuídos entre pinturas, desenhos e esculturas. Desde o início de sua vida profissional a artista manteve o corpo humano como signo referencial de sua obra e o momento atual é uma reflexão absoluta sobre seus últimos trabalhos cujo título claramente indica ser uma passagem, uma nova fase, seja de balanço e/ou novos caminhos pictóricos.
A palavra da artista
Fazem 6 anos desde a última exposição que fiz no Rio de Janeiro na qual completei o meu depoimento ao mundo em 50 anos de labor. O tema principal e sempre: o ser humano: vida/morte – prazer /dor. Desde 2012, graças à casualidade mágica que impulsiona os artistas, comecei a trabalhar em branco e preto numa sequência que chamo NUVEM. E como nuvens seguiam aleatórias na direção que elas exigiam, além de qualquer racionalidade. Deixei que me levassem aonde quisessem ir. Só agora descobri que com elas debrucei-me sobre os 55 anos do meu trabalho de arte onde coerência, liberdade e meticulosos cuidados artesanais foram a diretriz. O que faço necessita de silêncio e solidão para germinar refletir e comentar o mundo: tarefa da arte.
Texto de André Seffrin
A TÚNICA INCONSÚTIL DE PIETRINA CHECCACCI
Nas sucessivas séries de pinturas, serigrafias, esculturas ou múltiplos de Pietrina Checcacci nos defrontamos com a bela aliança entre domínio técnico e arte de amar, algo limítrofe ao que Carlos Drummond de Andrade soube dizer, e com ironia subjacente, no poema “A paixão medida”. Paixão sensual que, em Pietrina, pode eventualmente transformar-se em visceral e agônica, nesse caso mais próxima talvez da poesia de Jorge de Lima. O que equivale a dizer que a obra plástica de Pietrina se desenvolve às vezes em águas turbulentas, em territórios eruptivos, em espaços de inesperados e recônditos esplendores. Não por acaso, como se pode concluir, seu universo se mantém tão próximo da poesia e dos poetas. E ao erigir corpo e cidade numa única e vária paisagem metafísica, Pietrina acaba por assumir um caminho não só estético mas também ético, à beira das tantas descobertas científicas que em medidas iguais nos fascinam e fragilizam. Em cada linha ou escala cromática, em cada sugestão alegórica ou simplesmente jocosa, Pietrina cria suas formas profusas que ora se auto-referem, ora se desdobram a partir de uma única proposta, de memória ancestral e labor obsessivo. Nos rastros de um título famoso de Roland Barthes, é como se o artista andasse sempre e sem descanso em busca dos fragmentos de um discurso amoroso. Variações sobre o mesmo tema que, ao longo dos anos, cambiantes e crescentes, mantiveram-na incorruptível e adepta de uma arte realizada sem amarras, medos ou eventuais fugas. E é claro que esse universo bem nutrido e dinâmico, impulsionado pela raiz dos símbolos do viver, do amar e do criar, é seara de poucos artistas. Agora, em outro desdobramento não menos telúrico de sua vastíssima obra, e como antes, na série “A criação hoje”, de 2007, Pietrina novamente evoca nossa gênese de modo um tanto insólito e inquietante. Como na série anterior de tenuíssimas rosas ou rostos estranhos, o acento dramático se tornou mais impactante. Vultos suspensos em sombras uterinas, seres semoventes em improvável solidão, início e fim de retorcidos périplos terrestres. E aqui a aproximação se dá com um dos títulos seminais de outro grande poeta, Cecília Meireles – Solombra. Sol e sombra ou, quem sabe, o inominável. Como se, ao se afastar um pouco da sensualidade e do erotismo que a notabilizaram nos anos 70 e 80, Pietrina de repente se defrontasse com um mundo mais áspero e enigmático. E é mesmo um mundo estranho às festas humanas que se entremostra nestas telas cheias de luz e sombra. Como tatuagens de um inframundo, sem antes e sem depois, à mercê do acaso, esvaindo-se em distâncias. Diz Cecília: “Há mil rostos na terra: e agora não consigo recordar um sequer”. Um mundo de essências e pouca transparência, que não se sabe dentro ou fora, e sem nenhum conforto. Como se deu no final da série “Rosas”, em 2009, o DNA como reflexo ou duplicidade (espelhos líquidos), possíveis fetos ou nuvens sugerindo a anatomia humana, arco-íris ou amebas, tudo sem os véus da alegoria, espécie de errância amorosa ou catarse. No insulamento do corpo na paisagem, no seu exílio, temos o sangue que se faz bruma e sombra. Ventres, óvulos, montanhas, águas, panos, frutos, planetas, estrelas, pulsações celestes, sem princípio nem fim. Preponderam o preto e o branco nestas inesperadas nebulosas, formas primordiais do cosmos ou da gênese humana, amplamente analisada ou sugerida em tudo que Pietrina compôs desde sempre. Vermelho sanguíneo, negro e cinza são cores estabilizadas em suas incessantes mobilidades plásticas, desde os recortes de corpo fossilizados do final dos anos 70 ou mesmo antes, desde a fase Evaterra, por volta de 1973. No começo foi o pop, o ânimo fotográfico, a vinculação a um certo expressionismo, e o breve comprometimento político, habitado aqui e ali pelo lúdico, o humorístico e até o kitch da cultura de massa que aos poucos desapareceu em favor de um denso comprometimento humano, pleno e soberano. E foi esse comprometimento humano que a encaminhou para uma exuberante (e exaltada) sensualidade erótica ainda muito pouco estudada pela crítica. Um mundo anônimo (de corpos geralmente sem rosto) criado aos pedaços e que mais se revelou, a caminho da abstração, no sinuoso de frestas, pregas e fossos, angulosidades, sugestão de volumes que acabou por fim desembocando na tridimensionalidade. Em 1977, em entrevista a Antonio Hohlfeldt, Pietrina admitiu que existe em sua pintura um sentido escultórico de massas e volumes, aquela “inevitável dimensão escultórica” que Roberto Pontual capturou em 1978. No entanto, aqui e agora, o artista alcança o grau zero de suas pesquisas, uma lição das cores de serenidade quase cruel. O tênue rosa, o cinza fugidio e certos azuis profundos da série das rosas “escandalosamente” eróticas já anunciavam delicadas superposições de galáxias, buracos negros, confins do universo que pulsam dentro de cada um de nós, no que somos em nossos corpos e em nossa luz. Sim, como disse certa vez outro poeta, Lêdo Ivo, “somos corpos, somos os nossos corpos”, seja nos longes da paisagem que se faz corpo ou no corpo que a sugere, à flor da pele. Uma paisagem inaugural porque são inaugurais todas estas descobertas imediatamente transpostas ou traduzidas numa arte que se manifesta coesa, inteiriça como um continuum vital, uma túnica inconsútil.
Até 18 de outubro.