Através da criteriosa seleção dos artistas representados e suas obras, e contando com grandes nomes da arte brasileira além da aposta em jovens artistas com trajetória emergente, Anita Schwartz Galeria de Arte, Gávea, Rio de Janeiro RJ, investe na divulgação e propagação da cultura brasileira. Dando curso à programação 2013, agora o artista escalado é Abraham Palatnik, pioneiro da arte cinética no Brasil. Abraham Palatnik apresenta nesta exposição individual 31 trabalhos — dos quais quatro são “Objetos cinéticos” e apenas um “Aparelho cinecromático”.
O artista por Felipe Scovino
Pintura em movimento
Em recente entrevista ao autor, Palatnik afirmou que era essencialmente um pintor. Coloca-se, portanto, uma das questões mais pertinentes em sua obra: propor ao espectador que ele está diante de uma pintura sem anular a ideia da escultura, principalmente nos casos dos Aparelhos cinecromáticos (produzidos a partir de 1951) e dos Objetos cinéticos (produzidos a partir de 1964). Sua obra gravita em um limite, em uma linha tênue entre esses dois suportes.
Limites, passagens e invenções são circunstâncias muito próprias e constantes na obra do artista. Quando volta ao Brasil, em 1948, depois de morar na Palestina por 15 anos, um dos seus tios cede um cômodo em um apartamento em Botafogo, que se transforma no seu ateliê. Provavelmente por conta dos estudos envolvendo mecânica e física, assim como as aulas de arte (todos desenvolvidos na Palestina) e da qualidade típica de inventor, Palatnik começa a produzir uma das obras mais importantes da arte cinética: o Aparelho cinecromático. A primeira obra dessa série é fruto de uma tecnologia que variava entre a intuição e os anos de aprendizado de física, feita com materiais baratos e efêmeros, com lâmpadas articuladas por motores e comandadas por uma espécie de CPU – que executava os tempos e as sequências de cada foco luminoso da obra – construídas pelo próprio artista. Essa obra expõe claramente os caminhos que ele adotaria: mesmo partindo de uma forma tridimensional, nunca deixou de pensar como um pintor. O movimento, a dinâmica e o deslocamento tanto do objeto quanto do espectador são características centrais de sua obra, que, mais do que nos entreter, nos “hipnotiza” com os desenhos construídos no espaço e, com o ritmo – quase como uma dança –, em particular nos Objetos cinéticos, embalado pelo ruído da passagem de tempo emitido pelos seus mecanismos internos. O modo como elabora arte, tecnologia e cinetismo é muito particular, pois se faz presente pela organicidade dos materiais e pela delicadeza, muito vezes beirando o improvável, como é o caso dos relevos em jacarandá, nos quais os veios da madeira, dispostos em filetes e colocados lado a lado, produzem um efeito de expansão e movimento que faz com que uma onda vibratória siga para além do espaço restrito da tela ou da madeira. Por fim, sua vontade construtiva se manifesta no desejo bauhasiano de articular arte, sociedade e indústria, que pode ser observado nas poltronas, mesas, móveis, jogos e pequenos animais feitos em acrílico e tinta entre as décadas de 1950 e 1990. É interessante perceber que mesmo produzindo os móveis, o artista não deixou de exercer a pintura, já que feita em vidro adornava esses móveis e foi um passo importante para a série seguinte do artista, quando nos anos 1960 começou a utilizar o jacarandá e o cartão como meios de produção pictóricos. Esse caráter inventivo e experimental também está presente na série de pinturas com barbante e tinta acrílica realizada a partir de meados dos anos 1980. A pintura ganha um leve volume que auxilia na formação de um efeito ótico que equilibra a “tecnologia precária” do barbante com uma pesquisa rigorosa e sensível sobre o cinetismo e as possibilidades de expansão da forma e da cor através de um duplo movimento (das linhas e do espectador). Em vários momentos, percebemos um equilíbrio perfeito entre cores que são altamente dissonantes. Em uma das obras da série Permutáveis, estão integradas e associadas um núcleo em rosa, outro em verde, e diferentes módulos permeados por tons de cinza. A harmonia e a construção do ritmo se dão na forma como são suavizadas essas gritantes dissonâncias cromáticas.
O segundo momento de um paradigma em sua carreira, que, sem dúvida alguma, tem uma relação intrínseca com o Cinecromático, no sentido de iniciar sua pesquisa com o cinetismo, é o convite que recebe, ainda como pintor figurativo, de Almir Mavignier para visitar o Hospital Psiquiátrico Pedro II sob a coordenação de drª Nise da Silveira. Trava contato com a produção dos pacientes e fica impressionado com a qualidade das pinturas, especialmente com as obras de Raphael Domingues e Emygdio de Barros, que produziam imagens tão densas sem jamais terem passado por uma escola de artes: “Pensava que eu era um artista formado. Resolvi começar de novo. A disciplina escolar, de ateliê, não servia para mais nada”.[3] Foi o momento de abandonar a figuração, mas não a pintura.
Outra circunstância de passagem é quando Palatnik transita dos Objetos cinéticos – que se movem por circuitos próprios e independentes da ação do espectador – para uma participação virtual, na qual o corpo do sujeito é elemento fundamental para se perceber as distintas qualidades cromáticas, cinéticas e, por conseguinte, físicas que a obra promove. Diante de seus relevos e de suas pinturas, para conhecer todas as suas imagens ou possibilidades ilusórias – as variações de enquadramento e foco –, o espectador precisa experimentar um mínimo de movimento. A obra parece expandir-se e contrair-se, pois são criadas imagens virtuais que redimensionam o espaço a nossa volta. Guardadas as suas devidas especificidades, os Aparelhos cinecromáticos são gerados em um momento no qual a pintura amplia o seu limite e conceito. Se a pintura atravessava novos procedimentos para a sua apreensão e comunicação ao estabelecer diálogos intensos com a performance nos anos 1950 e 60, como foram os casos do dripping de Pollock e as antropometrias (1960) de Yves Klein, a ampliação do termo “pintura” em Palatnik se deu a partir de uma matriz construtiva e tecnológica, mas nem por isso menos intensa e importante que a vivenciada por esses artistas. Por outro lado, não podemos esquecer a relação formal dos Cinecromáticos e dos Objetos cinéticos com o campo escultórico, e como os Cinéticos parecem ser a estrutura interna, o “esqueleto”, dos Cinecromáticos. Ao fazer essa alusão, penso que Palatnik se distingue da tradição da op art e do cinetismo europeu, pela forma como constrói as suas obras: sempre pelo prisma da artesania. Sua “tecnologia” é composta de barbantes, lâmpadas, parafusos, e em alguns casos objetos mecânicos construídos por ele mesmo. Essa artesania própria o faz estar próximo da série Contínuo-Luz (c. 1963-66) de Julio Le Parc e do Penetrável (1967) de Soto, e não apenas pelo uso de materiais menos nobres associados à pesquisa cinética mas também pela economia de formas com que essa poética é regida.
Esta exposição apresenta também obras do artista pouco vistas pelo público. Desde um Relevo dourado passando por telas produzidas nos anos 1990 nas quais são aplicadas em sentido vertical finas camadas de cola sobre o plano, formando módulos de cor que transmitem um volume à pintura, um efeito semelhante ao que ocorre com a série Cordas. Em relação a esta série, há uma obra em especial que difere do conjunto mais conhecido ao ter a sua estrutura mais próxima de uma natureza com influência “africana”. Em um conjunto de três pinturas dos anos 1960, percebemos a mesma influência, e com um acento ainda mais totêmico em sua estrutura. É curioso perceber como a pesquisa com o cinetismo e o seu interesse pessoal por arte popular produziram uma série que diversifica os meios da pintura de matriz construtivista.
É importante ressaltar que a obra do artista obteve um lugar importante na passagem da modernidade para a contemporaneidade no país, no âmbito de suas pesquisas envolvendo pintura, tecnologia, escultura e design. Embora estivesse no seio da discussão sobre a chegada e, anos mais tarde, a maturidade da abstração geométrica (inclusive participando do Grupo Frente), Palatnik sempre quis se manter à margem de qualquer manifesto ou participação mais “política”. Ele, Almir Mavignier, Mary Vieira, Rubem Ludolf, entre outros, foram artistas que trilharam um caminho importante para a arte brasileira, em particular suas aproximações com a op art, o cinetismo e o design, mas que ainda merecem um estudo mais qualificado sobre as contribuições que ainda continuam realizando, no caso dos dois primeiros. Na virada dos anos 40 para os anos 50, em um rápido panorama, Mário Pedrosa defende a sua tese “Da natureza afetiva da forma na obra de arte”; Mary Vieira está realizando os seus Polivolumes e Palatnik, construindo o seu primeiro Aparelho cinecromático, sendo que a Bienal de São Paulo ainda nem existia. É fundamental destacar o pioneirismo desses artistas e, ao mesmo tempo, as bases para a modernidade nos anos 1950 (leia-se a maturidade da abstração geométrica, que foi e continua sendo um pensamento estético importante para a compreensão sobre as artes visuais brasileiras, e a institucionalização da arte por meio da inauguração dos museus de arte moderna e da própria Bienal), mas essencialmente o grau de invenção desses artistas que não foram apenas importantes para a produção nacional, mas ocuparam um lugar de destaque no cenário internacional, e juntamente com outros artistas sul-americanos, em particular os argentinos e venezuelanos, construíram uma produção de arte cinética tão qualitativa quanto qualquer produção europeia ou americana realizada no mesmo período.
Até 14 de setembro.