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AGENDA CULTURAL

Arte Cinética em Curitiba

A Simões de Assis Galeria de Arte, Curitiba, Paraná, promove até o dia 16 de dezembro a exposição coletiva “Arte Cinética Latino-Americana”.

 

Panorama sobre a arte cinética na América Latina

Felipe Scovino

 

O recorte para essa exposição possui mais uma particularidade além de estarem sendo apresentadas obras de arte cinéticas produzidas por artistas latino-americanos. Outro ponto de inflexão é o fato que o início da produção de arte cinética nas Américas coincide com o processo de modernização de grande parte desse continente. A mostra reúne a produção de três países (Argentina, Brasil e Venezuela) que entre os anos 1950 e 1970 passaram por profundos processos de industrialização, alargamento de políticas de importação, reformas amplas de infraestrutura em seus núcleos urbanos, diferentes práticas de uma arquitetura moderna e um desenvolvimento nunca antes visto na América Latina. Essa política de aporte financeiro e prosperidade – que pode ser exemplificada na construção de Brasília e no Plano de Metas (“50 anos em 5”) de Juscelino Kubitschek, ou na indústria petrolífera venezuelana ou ainda na rica vida cultural de Buenos Aires – possibilita um campo frutífero para as artes. Entre o fim dos anos 40 e o início dos anos 50 no Brasil assistimos a um amplo processo de institucionalização das artes com a fundação dos primeiros museus de arte moderna no Rio de Janeiro e em São Paulo (1948), além do MASP (1947) e da I Bienal de São Paulo (1951). Esta rede institucional permitiu a realização de importantes mostras de artistas internacionais no país, desde Calder a Picasso, passando pela importante mostra Pop na Bienal de 67, assim como possibilitou a emergência de uma nova geração de artistas brasileiros. E é aqui que se encontram os cinéticos. Desde 1950, Palatnik desenvolvia os seus Aparelhos cinecromáticos. O fascínio pelo movimento do jogo de luzes e o aspecto lúdico que o Cinecromático possui não podem mascarar uma importância que é singular nessa obra: não apenas marca o pioneirismo da arte cinética no mundo, mas essa invenção dialoga intensamente com a produção cinética na Europa e na América do Sul, particularmente na Argentina e na Venezuela, assim como amplia o conceito de pintura.

 

Em 1948, Mary Vieira realiza seus Polivolumes, torres vazadas, feitas em alumínio anodizado, formadas por semicírculos móveis em que o espectador, agora transformado em participante, escolhe a posição destes. Essas estruturas são móveis apenas no sentido horizontal. Se nos Aparelhos cinecromáticos e nos Objetos Cinéticos de Palatnik, o movimento e a participação se dão de forma autônoma em relação ao espectador – o que não acontecerá nas suas pinturas de matriz construtiva, a série W apresentada nessa mostra, já que a mobilidade do espectador frente a elas causa uma nova proposta para a ideia de movimento, dinâmica, e confronta a suposta rigidez que uma pintura teria -, os Polivolumes anteciparam de certa forma questões encontradas nos Bichos (1959-1964) de Lygia Clark. Nesses dois últimos exemplos, a obra é o molde para a nossa vontade.

 

O que temos nessa mostra, referindo ao campo de produção da arte brasileira, é a reunião de 4 artistas que tiveram participação fundamental no processo de pensar a simbologia do moderno. Abraham Palatnik, Antonio Maluf, Sérvulo Esmeraldo e Ubi Bava, cada um a seu modo, constituíram uma aproximação entre arte e ciência e pavimentaram a arte cinética no país.

 

No caso Relevo progressivo (série realizada a partir dos anos 1960) de Palatnik, o sequenciamento dos cortes na superfície do material – cartão – cria camadas ou ondas que variam dependendo da profundidade e localização do corte. O uso do papel-cartão leva à execução de ritmos e sinuosidades de grande impacto visual. Relevos também se desmembrou a partir dos anos 1990 na série W. Saiu o cartão ou o metal e entrou a tinta acrílica. O artista pinta telas abstratas que servem como ‘base’ para as futuras pinturas cinéticas. Num segundo estágio, o corte a laser fatia a pintura em réguas finíssimas. Depois, movimentando as varetas do ‘quadro fatiado’ no sentido vertical, ‘desenhando’ o futuro trabalho, o artista constrói um ritmo progressivo da forma, conjugando expansão e dinâmica visual. É importante destacar que o caráter cinético dessas obras se dá pela forma em como o espectador se coloca defronte a obra, isto é, a cada mudança de perspectiva dele, a pintura cria novas percepções e imagens.

 

Antonio Maluf foi o autor do cartaz da I Bienal de São Paulo. Artigo raríssimo em exposições, esse cartaz é um dos marcos do design brasileiro e das experimentações artísticas daquele momento. Os elementos estruturais do desenho, feito em três versões, reiteram e enfatizam o formato retangular do suporte. À medida que são reduzidos, os retângulos se adensam em direção ao centro do papel, projetando uma perspectiva tanto espacial quanto temporal. Todo esse conjunto de elementos é integrado ao formato do cartaz e o movimento das linhas paralelas, em duas cores, resultantes do seu perímetro, permite uma vibrante miragem óptica. Figura e fundo não conseguem diferenciar-se, são alternâncias constantes.

 

Maluf ainda dará início, na década de 1950, à produção das séries Progressões crescentes e decrescentes e Equação dos desenvolvimentos em progressões crescentes e decrescentes, realizadas em guache sobre papel, num primeiro momento, e depois com tinta acrílica sobre madeira. Nesse conjunto percebemos que a linha é transformada, por ilusão óptica, em vibração, o material em energia. Quando o espectador se movimenta diante destas obras, o fundo fragmenta a linha de cores, de modo que ele se apresenta como uma série de pequenos pontos flutuando no espaço. Eis a matemática se metamorfoseando em estruturas vibratórias a serviço de uma nova experiência de mundo para o sujeito. Em Equação dos desenvolvimentos (década de 1980), o artista elimina a dimensão física do quadro, privilegiando as construções gráficas. O exercício cinético, provocado pela repetição em série de estruturas monocromáticas, explora processos perceptivos de criação e recriação da forma (tem-se a sensação de multiplicação de quadrados num regime de tempo e espaço interminável).

 

Na série Homenagem ao espectador, realizada ao longo dos anos 1970, Ubi Bava adotou uma forma de experimentação utilizando superfícies construídas com espelhos ou unidades visuais modulares que captam o ambiente e a imagem do espectador. Os limites do círculo e a sua capacidade de reflexão são as unidades motoras do artista. Ademais, não há a preocupação apenas, como se isso fosse pouco, em experimentar novas capacidades cinéticas e propor a participação do espectador como um sujeito ativo e constituinte da obra, mas também a percepção em construir e organizar um estado pictórico. Esta analogia se faz presente na escolha e na ordem com que compõe os espelhos multicoloridos sobre o acrílico. Há o pensamento de um pintor articulando formas e cores naquela superfície.

 

E737, de Sérvulo Esmeraldo, é um exemplar dos mais importantes da sua icônica série Excitáveis. Produzida a partir de 1964, essa série é formada por caixas-objeto, feitas em acrílico, com elementos movimentados por eletricidade estática gerada pelo espectador quando a superfície da obra é tocada. Esmeraldo resolvia simultaneamente os desafios de fazer uma arte de participação do espectador e de estabelecer uma linguagem cinética sensível. Excitáveis retorna à problemática do acaso: a repetição exata de movimento, por mais complexa que seja, torna-se monótona na ideia do artista. Deve ser exercido algum controle. Isso é geralmente obtido pela descoberta de alguma relação entre os elementos nas caixas que se mantêm constantes no decurso de toda e qualquer variação de movimento. Excitável, aqui, diz respeito à ação de colocar em movimento. Como afirma Matthieu Poirier, “cabe ao espectador a função de carregar negativamente a obra, esfregando vigorosamente a mão na superfície da caixa, fazendo que a tal superfície atraia e tire da inércia as diversas linhas cuja carga é positiva.”[1] Essa ação do espectador desorganiza a ordem pré-estabelecida; o que era razão transforma-se em caos. De forma efêmera, criando um tempo próprio de nova aparição e organização para a obra, o gesto do espectador articula uma poderosa ligação entre arte e ciência, e ainda entre o que existe e não necessariamente é visto a olho nu, como novamente afirma Poirier: “Disfarçada pela impressão unicamente telecinética de produzir o deslocamento de objetos a distância, a obra nos torna conscientes da capacidade motriz das forças elétricas invisíveis que nos circundam e nos constituem” [2].

 

As vanguardas geométricas se estabelecem na Venezuela e na Argentina, respectivamente, com as operações de Alejandro Otero, Carlos Cruz-Diez, Gego e Jesús Rafael Soto e do Grupo Madí. Como afirma o manifesto do grupo argentino feito em 1946:

 

Madí confirma o desejo do homem de inventar objetos ao lado da humanidade lutando por uma sociedade sem classes que libera a energia e domina o espaço e o tempo em todos os sentidos, e a matéria em suas últimas consequências.[3]

 

O terreno para a abstração, particularmente o cinetismo, na Venezuela se deu no começo dos anos 1960. Cruz-Diez segue caminhos que poderíamos chamar de “um espaço extra-pictórico”, muito próximos aos de Soto. Suas obras iniciais lançam a cor ao espaço por meio da luz reflexiva: o fundo da pintura se transformava numa espécie de tela branca, destinada a receber os reflexos de luz. De certa forma, se apoia nessa presença corpórea da obra (e aqui as estruturas vibratórias de Soto entram na discussão) para aprisionar a luz projetada em direção ao espaço, assim como, mais tarde, utilizará meios transparentes para alcançar o maior grau possível de imaterialidade, como são os casos das duas obras apresentadas na mostra. Em Color Aditivo Panam 7 (2010) e Physichromie Panam 226 (2015) observamos que as figuras construídas sobre o plano promovem um contínuo jogo de alternância entre figura e fundo de modo a confundir as suas respectivas fronteiras. Sem dúvida, esse conjunto de retângulos almeja conquistar o espaço. Notem, portanto, as relações frutíferas entre essa qualidade de arte cinética e as práticas de uma arquitetura moderna na América Latina. Vejam os casos do arquiteto venezuelano Carlos Raúl Villanueva, muito próximo a Soto e Cruz-Diez, e também Niemeyer. Ambos tornaram curvas as retas, possibilitando uma outra linguagem e visualidade para o elemento concreto. Sobre a obra de Soto aqui apresentada, é importante dizer que além de colocar em suspenso a tradicional oposição entre figura e fundo, em que não se sabe qual é qual, resultando em uma disposição não mais hierarquizada, o encontro das linhas que atravessam essa obra desperta a geometria lírica desse artista. Eis o fenômeno da vibração – mais que ótica – que este cruzamento provoca. É uma tensão por estarem tais linhas no mesmo plano indicando um “nó espacial, que mesmo Mondrian deixa em suspenso ao eliminá-las em sua última fase” [4]. Há algo de musical, mágico e lúdico nessa obra. O plano se torna ativo ou é constantemente reativo pelo espectador. Daí artistas como Soto e Palatnik se declararem como pintores, apesar da pintura de ambos lidar com elementos tridimensionais. As hastes de Soto alteram discretamente a estabilidade do horizonte, e a escultura com motor de Kosice caminha pelo mesmo interesse. É a própria obra posta em questão, ameaçando os seus limites, experimentando as suas várias possibilidades, de forma intensa. Estava em questão o envolvimento total do espectador e a potencialização de toda a sensorialidade. A repetição e a progressão, causadas pelo acionamento do motor, estão entre os modos possíveis de suscitar uma ultrapassagem em direção ao ilimitado. O mundo é movimento, ou melhor, cinético, estando muito além do estritamente visual. E a obra quer acompanhar este modo de ser e se converte em obra-motor, obra-movimento. Ela entra em dissolução, se refaz no contato com o espectador, diminuindo sua distância com ele e exigindo sua participação. Eis a sua riqueza e contribuição: a obra é o espaço sensorial, ativo e mobilizador da vontade e da consciência do sujeito.

 

Luis Tomasello e Julio Le Parc são dois artistas argentinos de primeira ordem mas que fazem parte da geração seguinte ao do Madí. As obras desse último se caracterizam pelo uso da luz como componente central e como ela pode gerar, conectadas a motores, formas no espaço. Entretanto, nas duas obras do artista que estão na exposição notamos a associação entre luz e cor. A série Modulation destaca o largo potencial de variações cromáticas que a pintura pode oferecer. Tratam-se de obras baseadas em elementos geométricos, que utilizam as reações fisiológicas de percepção ótica. Os movimentos do espectador modificam as imagens que a pintura pode oferecer. Ela deixa de ser algo estritamente estático para nesse campo da interação (claro, guardadas as especificidades de uma interação entre espectador e obra bidimensional) promover a multiplicação das imagens. Já Atmospheres chromoplastiques nº 446 e nº 972 e Objet Plastique nº 897, todas de Tomasello, fazem uso de estruturas em relevo onde a ocupação do espaço tridimensional é o desejo maior. O volume que é dado pelas estruturas em madeira se transforma em fluxo e logo se faz tridimensional. A projeção de sombras sobre as madeiras promove uma espécie de expansão dessas formas. É através de uma economia de elementos que o artista promove uma larga experimentação envolvendo planos ilusórios, expansão das formas no espaço e a relação intrínseca entre luz, cor e forma. Em Atmosphere chromoplastique no508, se instala o conceito da ambiguidade e da desorientação ópticas através de ritmos aleatórios e padrões geométricos. A obra associa uma severa destreza técnica, conservando o rigor construtivo, com a delicada gestualidade de traços que deixam de se articular ao perímetro do quadrado para se dirigirem ao centro do quadro e desaguarem no ilusionismo óptico.

 

Essa é uma exposição de fôlego e muito importante para que tomemos conhecimento sobre a produção cinética nesses 3 países e os laços e as diferenças que podem ser analisados quando essas obras ocupam o mesmo espaço. Assinalo que os artistas dessa mostra não foram considerados de vanguarda apenas em seus respectivos países mas no mundo. A produção cinética latino-americana é uma das mais respeitadas no âmbito crítico e institucional, afirmando a qualidade e a pertinência desses artistas.

 

[1] POIRIER, Matthieu. Os Excitables de Esmeraldo ou cinetismo em viveiro. In: AMARAL, Aracy (org). Sérvulo Esmeraldo. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011, p. 119-121.

[2] Idem, p. 121.

[3] Cf. QUINN, Arden; KOSICE, Gyula. Manifesto Madí. In: AMARAL, Aracy A. (org). Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977, p. 62-64.

[4] VENANCIO FILHO, Paulo. Soto: a construção da imaterialidade. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2005.

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