O pintor e escultor Bruno Passos apresenta até o dia 30 de outubro na Galeria Kogan Amaro São Paulo, Alameda Franca, 1054, Jardim Paulista, a exposição “Há coisas entre nós que não dizemos em voz alta.
A arte e o “real”
“Que quadro lindo! Parece uma fotografia…” O elogio é frequente nas conversas do público em museus e exposições. É fácil atacar a visão naïf no campo da estética. Mesmo sincera e válida para o indivíduo que a emite, a opinião que aproxima arte da semelhança com o “real” é a morte da arte em si. Reduzida à função de mimesis, a representação artística, a rigor, estaria condenada a um papel subalterno, já que hoje, mais do que nunca, poderia ser substituída por bons recursos de fotografia digital retocada por programas que aproximam ainda mais a imagem do real (ou daquilo que se supõe que ele seja). Pior, a ideia ignora que a fotografia também é uma interpretação, assim como quaisquer arroubos hiper-realistas que, de quando em vez, encontramos pelas estradas da vida.
Entre dois polos, o figurativo e o abstracionismo, estaria uma parte do debate no campo artístico. Claro que as questões são mais complexas. Caravaggio e Ingres, por exemplo, são pintores figurativos, ambos, e, de muitas formas, opostos em método e objetivos.
Quando Monteiro Lobato atacou Anita Malfatti em artigo famoso, nada mais fez do que apostar no abismo suposto entre os que faziam “arte pura” (como Praxíteles e Rodin) e aqueles cuja produção se aproximava da dos internados em manicômios. Sim, muitos indicaram que a irritação do escritor era com a subserviência a vanguardas estrangeiras, mais do que com os traços modernistas da exposição de 1917. O fato é que ele colocou o escultor grego da famosa Afrodite de Cnido e o escultor francês da estátua de Balzac como integrantes de um time unido por ideais artísticos similares. O que Praxíteles diria de Rodin? Impossível saber, porém seria lógico imaginar que seria uma crítica pior do que a de Lobato. O time da “arte pura” teria dificuldades em atuar em conjunto no campo.
Acho que nunca será dito o suficiente: toda arte é interpretação e a figuração é um dos muitos aspectos da subjetividade possível. Escultores clássicos gregos e idealizadores de móbiles voadores milionários são intérpretes subjetivos de um mundo e de um olhar. A visão do estilo do artista também deve levar em conta a apreciação mutante do público. Mudam os estilos de cada criador e muda a percepção sobre ele. A arte clássica helênica que Lobato e sua tribo admiravam era, na época do seu apogeu, coberta de cores berrantes. Muitas camadas estéticas seriam removidas, para que o branco do mármore do Monte Pentélico pudesse assumir a sobriedade clássica hoje louvada. Toda arte é interpretação e todo olhar possui história.
Os Passos de Bruno
O artista Bruno Passos nasceu em 1985, em Marília, São Paulo. A partir de um início no mundo da moda e do design, dedicou-se ao campo da pintura e da escultura. Um ponto fundamental foi ter trabalhado ao lado do pintor escandinavo Odd Nerdrum (1944), cuja influência foi decisiva em seu trabalho. Contudo, Bruno sempre invocou a ascendência de outros mestres além do nórdico. Honoré Daumier (1808-1879) traz o interesse pelo humano fora da beleza acadêmica ou do decorativo dos salões. Tal como Daumier, Bruno não deseja que sua obra exista apenas para combinar com a cortina. O fauvismo criativo de Henri Matisse (1869-1954) também paira sobre a inspiração de Bruno, com um toque mais rebaixado e reflexivo. Talvez seja possível também a ideia de Matisse, em dia tenso, admirando a grande onda de Hokusai (1760-1849) que tenta submergir barquinhos frágeis. Fragilidade, elemento água e narrativa trágica encoberta na paz são linhas fortes da arte de Bruno Passos.
As obras ou… as coisas entre as coisas
Como ele próprio declara, Bruno é o pintor de “entrecoisas”. Entre o visível/banal do mundo e algo que o olhar do artista capta existe o fluxo sutil das “entrecoisas”. Estas surgem com muitos suportes, desde o óleo sobre a tela até o compensado naval. Bruno experimenta. O cinzel pode ser substituído, em algumas esculturas, pela faca. Acha forte? Serão notados golpes de machado em outras pinturas. Há um barbarismo estetizante e cheio de energia. A tinta acrílica, com suas fronteiras fortes, deve dialogar com o oriental e sóbrio nanquim. Nada fica muito fixo como método porque, afinal, ele não está trabalhando com as coisas, porém com o fluxo contínuo “entrecoisas”.
O autor viaja pelo Brasil “profundo” em busca de novas fontes. Ele difere do projeto “povo e nação” porque não é um antropólogo do folclore. O país de Bruno está imerso no que o artista denominou: “universalidade brutal dos sentidos”. Suas obras gritam contra a padronização atual, contra o “chapamento” do real pelos discursos de marketing pessoal. Ele deseja o que pulsa, o que repulsa, o que atrai e choca. Bruno é seduzido pelo ser. Os quadros tornam as stories do Instagram ainda mais pastiches de Dorian Gray. O que a rede social oculta, ele traz à tona. Funciona como a lição de anatomia do Dr. Tulp, de outro mestre que influencia nosso artista: Rembrandt (1606-1669). Se o doutor Nicolaes Tulp mostrava a seus alunos flamengos cada fibra muscular e nervo, Bruno exibe, em seus quadros, o pulsar cru da vida, uma lição de anatomia vibrante e não o mundo lido por filtros de melhora, como em redes sociais. Tudo iluminado por uma luz que não é a simples e costumeira adição de branco. A luminosidade vem de um tom qualquer que dialogue com o denso-áspero da sombra.
Sabemos que pintores neoclássicos passavam um longo tempo disfarçando a irregularidade da superfície, para que, no liso absoluto do quadro, brilhasse uma ordem matemática e ideal. Bruno está em outro lugar. Sua obra atualmente apresenta mais irregularidades intencionais do que há alguns anos. Sobreposição de tintas e de intervenções mecânicas criam um aspecto de alto-relevo e de tridimensionalidade, como outra forma de ampliar a percepção do quadro. Bruno mostra o prédio e os andaimes do possível da sua concepção. Arquiteto/pedreiro que gosta do revelar e odeia o velar.
Não procure uma zona de conforto decorativa. Os títulos colaboram ainda mais para desinstalar. Querem um bom exemplo? Bruno retratou a companheira com uma centralização quase rafaelesca e delicada e nomeou ao quadro como ”Harpia”, o monstro mitológico que roubava comida e atacava pessoas com suas garras de águia e rosto de mulher.
A natureza ocupa um novo espaço na etapa atual de produção do criador. “Eu já não estou mais aqui” faz a água fluir sobre um quase fantasma que se dilui nela sem perder o medo instintivo. É uma cachoeira poderosa e original, uma hemorragia hídrica que tenta irrigar um ser incapaz de produzir o famoso “sentimento oceânico de S. Freud” (1856-1939), a plena diluição da consciência em um todo maior. Sim, “Há coisas entre nós que não dizemos em voz alta”, como mostra outro quadro. A solidão contemporânea talvez seja a mais dramática de todas.
Todas as esculturas trazem o traço da humanidade olhada sem romantismo, sem crueldade, perfectíveis sem perfeição. A metáfora líquida, frequente nos quadros, atinge o rosto que emerge da maré. São instantâneos realistas sem Photoshop. Parecem novas versões dos schiavi de Michelângelo (1475-1564). Lá, o escultor queria fazer o ser humano emergir da matéria bruta e adquirir sua posição no mundo. Aqui, cada pessoa já se libertou da matéria e adquiriu uma dimensão calma, quase resignada. Intuo que tenha surgido, ali, em materiais diversos, o humano pós-tudo: pós-pandemia, pós-modernidade líquida e pós-humano. Existe um brutalismo formal e uma delicadeza insuspeitada nas posições propostas para as figuras tridimensionais. Enquanto Caravaggio quis mostrar a Medusa que chocasse o observador em um escudo, Bernini (1598-1680) esculpiu uma Alma Danada para eternizar o terror de um condenado ao inferno e Camille Claudel (1864-1943) materializou o desalento do abandono, Bruno Passos não pretende nada catequético, dramático ou sedutor. Como seríamos se não fôssemos para os outros, se fôssemos para nós e em nós? As esculturas dele ajudam na pergunta.
Enfim, Bruno desconfia da racionalidade e não chega a formular uma alternativa romântica ao domínio da razão. Funciona, nas artes, como Blaise Pascal na filosofia, desconfiando da magnitude cerebral e falando da inconstância das aparências.
Em décadas passadas, o desafio era escandalizar a burguesia, chocá-la e conseguir um lugar ao sol da publicidade pelo escândalo. O grito de “épater la bourgeoisie” é substituído por “escandalizem a suas convicções ordenadas e aparentes, sendo você proletário ou burguês”. Retire as máscaras, lave o rosto, ignore as dimensões construídas e observe. Se você ficar incomodado, não é porque você é um burguês, é porque você é um humano em uma galeria de espelhos. Ouse observar! Arrisque ver-se. Tente ser.
Final
Seria curioso registrar como encontrei Bruno Passos. Como quase toda semana, estava entrando em um concerto na Sala São Paulo. Bruno interrompeu meu trajeto e me convidou para ver a exposição dele ali ao lado. Fiquei impactado pelas obras, em particular pela imagem de um senhor negro, austero e solene, com fundo vermelho.
O retrato que ele desejava fazer de mim começou algumas semanas depois. Bruno sentado ao chão e eu em uma bergère. Litros de café fluíram em tardes de sábado, em meio a conversas sobre arte e figurativismo.
De repente, após muitas sessões, Bruno “empacou”. Não estava satisfeito com o que via. Talvez não tenha conseguido captar a “maldade” que o tinha movido inicialmente. Quem sabe, meu traço luciferino tenha sido diluído nos cafés. O quadro não foi adiante.
A sociabilidade cresceu. Frequentei o universo de Bruno e Camila no apartamento deles. Houve saraus na minha casa. Depois, mudaram-se para a Serra da Mantiqueira. Por fim, fui visitá-los no novo endereço, em Itu. Lá, estava sendo gestada a coleção que agora se apresenta ao público. O quadro permanece inacabado, assim como minha maldade. A amizade sobreviveu aos dois fatos.
Leandro Karnal (Professor da UNICAMP / Escritor).
Sobre o artista
Estilista de formação (UEL), Bruno teve seu trabalho reconhecido como um dos participantes da identidade visual do SPFW (2009), exposto posteriormente na Bienal de Veneza, também foi selecionado para a Bienal do Design Brasileiro (2013) e, como estilista, fez aparições na Folha de São Paulo, Vogue e Valor Econômico. Bruno teve seu primeiro contato com a pintura tardiamente, aos 27 anos, após uma epifania, foi quando se retirou da Moda e começou a se dedicar integralmente a pintura onde, de modo precoce, colecionou premiações e seleções nos mais tradicionais salões de pintura clássica nacional: SBA de Piracicaba, SAV de Vinhedo, SBA de Limeira, entre outros. Na sequência, foi o primeiro brasileiro aceito para ser aprendiz do pintor sueco Odd Nerdrum (MET-NY, National Gallery-Oslo, Museu de Gotemburgo), sua residência artística (Noruega 2016) foi bem sucedida e, em 2017, recebeu novo convite para retornar e ser o assistente de Nerdrum em sua maior obra física, “Opening of the Prisons”. A vivência escandinávia lhe abriu novos rumos, dos quais se destacam o convite para uma Exposição Individual na Secretaria de Cultura de São Paulo (2018) e a atual residência artística de um ano no museu FAMA, em Itu. Bruno realiza expedições sazonais aos rincões do Brasil, de onde extrai insumo para seus quadros de Brasilidades latentes e não óbvias. Seu foco é subverter a técnica acadêmica para que ela se torne uma fonte de estímulo sensorial ao espectador, estimulando emoções ao examinar o que é ser brasileiro e quais são as características que constituem esta identificação. Suas obras fazem parte de coleções na França, EUA, China e Brasil e, no ano passado, foi considerado pela revista Norueguesa Sivilisasjonen um dos três maiores pintores clássicos atuais.