Detentor do Turner Prize (maior prêmio das artes visuais do Reino Unido) e um dos artistas mais valorizados e polêmicos da atualidade, Damien Hirst recebeu, pela primeira vez , uma mostra individual no Brasil. Autor de obras que surpreenderam o mundo das artes a partir do final dos anos 80 – como o famoso tubarão mergulhado em um tanque de formol (The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living) e a caveira humana cravejada de diamantes (For the Love of God) –, o artista inglês inaugurou na White Cube São Paulo, Vila Mariana, São Paulo, SP, a exposição “Black Scalpel Cityscapes”, composta por 17 trabalhos inéditos.
Descritas pelo artista como “retratos de cidades vivas”, as obras apresentam uma variada seleção de instrumentos cirúrgicos que são agrupados para criar visões aéreas de espaços urbanizados ao redor do mundo. Nelas, Damien Hirst investiga tópicos relacionados a realidades muitas vezes inquietantes do mundo moderno, como vigilância, crescimento urbano, globalização e a natureza virtual do conflito, assim como elementos que se relacionam à condição humana universal, tais quais nossas inabilidades para frear a deterioração física.
Nas novas pinturas – todas em fundo preto –, Damien Hirst agrupa bisturis, lâminas, ganchos, limalhas de ferro e alfinetes de segurança para retratar elementos urbanos naturais e artificiais, como estradas, rios e prédios. Cada obra é inspirada em uma cidade diferente, incluindo zonas de conflito recentes, centros de relevância econômica, político ou religiosa e locais relacionados à própria trajetória do artista. A seleção traz, entre outras, São Paulo, Rio de Janeiro, Washington DC, Roma e o Vaticano, Leeds (onde o artista foi criado), Pequim, Moscou, Nova York e Londres. A história particular das cidades está escrita dentro de sua amplitude geográfica, mostrando como cresceram gradualmente e se desenvolveram ao longo dos anos. Técnicas de padronização, repetição sistemática e uso de grades, marcas registradas vistas em séries anteriores, como “Spot Paintings”, “Colour Charts”, “Entomology Cabinets” e “Kaleidoscope Paintings”, também estão presentes nas novas pinturas. Esta metodologia é essencialmente um exercício em que Damien Hirst aplica ordem ao caos, enquanto reconhece que a ordem ou o controle frequentemente são conceitos que permanecem remotos.
A série “Black Scalpel Cityscapes” (em tradução livre, Negras Paisagens Urbanas de Bisturis) faz referência ao procedimento militar conhecido como “ataque cirúrgico” comumente usado em guerras modernas, visando a limitar danos colaterais ao definir áreas precisas para a destruição. A sugestão de um conflito digital, remoto, inevitavelmente camufla as realidades trágicas e devastadoras da guerra. As obras evocam a imagética usada nos curtas “Powers of Tem”, 1968, 1977, de Charles e Ray Eames, bem como as sequências em câmera lenta e em time-lapse de cidades norte-americanas no longa-metragem cult “Koyaanisqatsi” de 1982, de Godfrey Reggio – ambos referências fundamentais no que diz respeito a concepção moderna de vida urbana. As pinturas de Damien Hirst, portanto, fazem alusão inevitável ao “olho que tudo vê”, tais quais ferramentas de vigilância como o Google Earth – usadas hoje por cerca de meio bilhão de pessoas –, cuja origem está em um aplicativo de mapeamento em 3D usado pelo exército americano durante a guerra do Iraque.
Damien Hirst tem descrito os bisturis de aço, objetos recorrentes em sua obra desde o início dos anos 90, metaforicamente como “escuros mas ao mesmo tempo claros”, em referência ao apelo visual da ferramenta de precisão altamente reflexível e também ao temor universal à faca cirúrgica. Ao brincar com o jogo de palavras “surgical strikes” (ataques cirúrgicos), o artista disseca não apenas a preocupação particular com a mortalidade, mas a ansiedade enraizada da sociedade com relação a vigilância, digitalização da guerra e uma remota ordem orwelliana e sua imposição em nossas individualidades.
Até 31 de janeiro de 2015.