Galeria Bergamin & Gomide, Jardins, São Paulo, SP, apresenta a exposição “Paulo Roberto Leal”.
Artista carioca, com influência dos movimentos Concreto e Neoconcreto, é reconhecido por ter explorado as possibilidades plásticas do papel A produção artística de Paulo Roberto Leal (1946 -1991) é tema da exposição apresentada pela galeria Bergamin & Gomide entre os dias 08 de novembro de 2018 e 02 de fevereiro de 2019. As possibilidades e manipulações plásticas do papel kraft e outros papéis mais nobres foram amplamente exploradas pelo artista carioca, que iniciou sua carreira em 1969 como programador visual de catálogos. Os anos 1970 e 1980 marcaram a carreira de Leal, influenciada pelos movimentos Concreto e Neoconcreto, típicos de sua geração, além do movimento Minimalista, a Arte Povera e Arte Conceitual. Apoiado nessas abordagens, o artista apresentou uma produção reflexiva, mesmo sem ter formação acadêmica. Sua técnica foi adquirida por meio do convívio com artistas e críticos, da leitura de obras contemporâneas e da visitação a museus e galerias. A arte de Leal tem caráter experimental, com o objetivo de desenvolver uma lógica de ideias através de uma expressão plástico-visual. A mostra apresentada pela Bergamin & Gomide reúne cerca de 16 trabalhos, entre eles Armagens, que tem moldura acrílica com fragmentos de papel kraft dobrados no limite, antes de formarem vincos. A obra explora a tensão elástica do próprio papel. Ondulando o plano da folha até o seu limite, Paulo Roberto Leal constrói curvaturas e ordena os fragmentos que por acumulação formam linhas nos encontros das diversas folhas. Armagens é um território delimitado pela moldura e um volume contido pela superfície de acrílico transparente e leitoso, que remetem à técnica renascentista do chiaroescuro (contraste entre luz e sombra). Já na série Entretelas e Sobretelas, Leal transmite uma renovada delicadeza em tela crua e a linha de costura, sem papel kraft, articulando formas geométricas com uma tênue sugestão de cor por meio dessas linhas. Em 1978, o artista apresentou uma mudança fundamental em suas criações com Armaduras, ao destacar a simplicidade e a autonomia dos materiais. Embora possa ser vista, a linha é desmaterializada, formada a partir de recortes e colagens. A linha é uma espécie de desejo. Após as mudanças sociais, políticas e culturais ocorridas na primeira metade da década de 1980, a repressão e a ditadura começam a ceder, a expressão artística ganha mais cor e a pintura mais espaço. A arte de Leal também passa por transformações e transita para o campo pictórico, sem deixar de lado todo o legado e a tradição construtivista concreta. Nesse contexto, o artista mostra-se mais aberto à cidade, ao pluralismo, às expressões bem humoradas e à introdução da figuração. Em 1984, Paulo Roberto Leal em parceria com Marcus Lontra e Sandra Magger, organizou a exposição “Como vai você Geração 80?”, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. Na ocasião, foram reunidos 123 artistas do eixo Rio – São Paulo. Leal e Lontra resumiram o espírito da exposição da seguinte forma: “está tudo aí, todas as cores, todas as formas, quadrados, transparências, matéria, massa pintada, massa humana, suor, aviãozinho, geração serrote, radicais e liberais, transvanguarda, punks, panquecas, pós-modernos, neoexpressionistas (…)”
A exposição de Paulo Roberto Leal, em cartaz na Bergamin & Gomide, é realizada com a colaboração da Ronie Mesquita | Galeria, do Rio de Janeiro.
Texto de Frederico Morais
Paulo Roberto Leal
Uma Releitura
Afirmei mais de uma vez, em textos críticos veiculados em jornais e em catálogos de suas exposições, que Paulo Roberto Leal é um artista de tipo novo, pós-moderno. Sigo pensando assim. Na juventude, nunca imaginou ser artista, tanto que se formou em economia e durante muitos anos foi funcionário do Banco Central do Brasil. Jamais cursou qualquer escola de arte, tampouco teve professores particulares. Aprendeu o novo ofício no convívio com artistas e críticos de arte, como frequentador assíduo de exposições e ateliês. Pouco a pouco, formou uma pequena coleção, reunindo obras de Ivan Serpa, Franz Weissmann, Amilcar de Castro, Lygia Clark, Willys de Castro, Volpi, Ione Saldanha e Raymundo Colares, artistas vinculados com maior ou menor grau de intensidade à vertente construtiva da arte brasileira. Um indicativo claro de qual seria sua opção.
Data de 1969 o início de sua atuação como artista. Mas, para Leal, desde os primeiros trabalhos autorais, o importante nunca foi exorcizar demônios interiores, nem, tampouco, apesar da gravidade do momento vivido, insistir em uma retórica política. Em sua carreira artística, relativamente curta devido à morte prematura, seu propósito maior foi exercer o pleno controle dos significados de sua obra, tendo como base um pensamento plástico.
Artista construtivo, o seu alvo foi sempre a materialidade da obra, a afirmação de seus componentes físicos e não alguma coisa situada fora dela, mas referida ou recriada enquanto imagem atada à superfície da tela. Mesmo em sua fase inicial, que tinha como matéria-prima o papel deslizando intocado sobre o painel, ou dobrado e acumulado em caixas de papelão abertas (“Arme”), convidando à participação criativa do espectador. E também aprisionado em recipientes de acrílico transparente ou fosco (“Armagem”). Mas, diante dos seus trabalhos, espectadores ou colecionadores ainda irão se perguntar se estão efetivamente diante de quadros? A resposta, claro, será afirmativa. Na série de trabalhos denominada “Entretelas”, poderíamos dizer que a agulha da máquina de costura funciona como um pincel, e o fio de linha, como tinta. Assim, sem usar tintas e pincéis, ou recortando e colando fragmentos do tecido, Leal seguiu construindo quadros, tanto que foram destinados à parede, situando-se, pois, no âmbito de uma tradição que se inicia no Renascimento. A portabilidade da pintura.
Para Leal, portanto, o quadro nunca foi uma questão encerrada, mesmo depois de tantas vanguardas e de muitas “mortes” anunciadas da pintura. E se nas diferentes etapas de seu projeto elimina a imagem, trazendo ao primeiro plano o próprio suporte da obra, foi para voltar ao grau zero da pintura e começar tudo de novo. Uma vez mais viver a aventura do quadro. A começar pelo próprio tecido da tela, por vezes pintado no avesso e no direito, recortado e costurado – com ocasionais fios soltos a romper a rigidez da composição. Ou colado, mantidas suas cores e manchas anteriores à própria tinta, bem como as texturas e outros valores táteis.
O ciclo do papel durou cinco anos. Primeiro, deixado livre, solto, sofrendo a interferência do clima e do tempo. Ou propiciando a participação lúdica e tátil do público – papéis para armar –, “Armagens”. Em seguida, encerrado em estruturas de acrílico transparente em cujo interior o tempo vai lentamente ondulando o papel.
Ao trocar o papel pelo tecido como matéria-prima, Leal fez a seguinte indagação: “Meu trabalho seria o mesmo se, àquela época, vivêssemos outra situação, se houvesse qualquer outro tipo de impedimento à criação? Ou nenhum?” E responde ele mesmo: “A cultura funciona dentro de um encadeamento de situações. Se uma das partes está enclausurada, todas as demais sofrem. É certo que aprisionar papéis dentro de caixas de acrílico pode e deve ser considerado um problema meu nos planos ético e estético. Mas é também um problema de ordem mais geral. Hoje troquei o papel pelo tecido, o que para mim significa uma abertura em termos de vida: assumir com franqueza um determinado comportamento, uma visão mais racional das coisas, enquanto antes, no papel, de certa maneira, eu me escondia.”
O momento mais radicalmente construtivo da obra de Paulo Roberto Leal é a série “Entretela” (1974-1976). Ela reúne telas costuradas, pintadas a óleo, cujas linhas (costuradas e não riscadas) definem espaços modulares e simétricos, impecavelmente silenciosos e limpos. E que assim se mantêm mesmo quando os módulos internos disputam a primazia do primeiro plano ou quando a tela, sustentada em um de seus vértices, se deixa cortar por linhas transversais, sem que o equilíbrio seja afetado. Uma segunda série, “Armadura” (1978-1980), reunindo pinturas a óleo recortadas e coladas sobre tela, tem a mesma raiz construtiva. Mas os fragmentos da tela recortada são em seguida colados sobre outra tela, criando na sua junção linhas fictícias, fortes e bem visíveis, enquanto parecem se descolar, antevendo o colapso da superfície. O que, entretanto, não acontecerá.
Respondendo à pergunta contida no título de meu comentário sobre uma exposição de Leal realizada no Rio de Janeiro, em outubro de 1980, eu afirmo no texto: “Não é preciso muito esforço mental para perceber que mesmo quadros como os que Leal expõe na Galeria Saramenha podem ter implicações políticas. O próprio caráter construtivo de sua obra se opõe ao caos permanente de nossa sociedade, a uma realidade tropicalista, mas, também, por ser uma geometria brasileira e tropical, ela tem qualidades sensíveis que diferem de outras geometrias mais rígidas. Ou seja, ela não se opõe apenas ao caos reinante fora dos limites do quadro. Ela procura entender esse caos, recolher a espontaneidade e a alegria de sociedade cultural mais aberta. Porque o excesso de rigor pode levar igualmente ao autoritarismo da forma, tão prejudicial quanto a ausência de qualquer ordem.”
Frederico Morais