A Galeria Tempo, Copacabana (ao lado do Copacabana Palace Hotel), Rio de Janeiro, RJ, exibirá paisagens do Rio de Janeiro, através de “Wave”, exposição individual de Renan Cepeda. O artista é considerado um dos grandes nomes da fotografia brasileira contemporânea e apresentará nove imagens em grandes formatos.A exposição traz um extrato da nova experiência de Renan Cepeda com a fotografia infravermelha obtida por câmera digital. Algumas fotografias digitais, mais recentes, em que o autor teve que fazer opção de cores no computador. Como este tipo de luz é invisível obviamente não possui cor. É quando a fotografia digital realizada por uma câmera modificada em laboratório deixa a critério do fotógrafo a escolha da matiz de cada imagem, multiplicando suas possibilidades criativas. O livro “Rio Infravermelho”, lançado pelo artista há quatro meses, pela editora Casa da Palavra foi também um fator motivador para esta exposição que exibirá algumas imagens que não foram publicadas na apurada edição.
A palavra do artista
“Considero o Rio de Janeiro uma cidade feia encravada num dos mais belos sítios do Mundo. As paisagens tomadas de longe, a partir das montanhas, do mar ou da outra margem da baía, contrastam radicalmente com a visão de quem está ao pés de um prédio em Copacabana (que deve ter sido a mais linda praia do planeta até um século atrás), ou no fluxo de algum engarrafamento na Paulo de Frontin. Nos incomoda nesta cidade a total falta de personalidade arquitetônica e a trágica ausência de planejamento urbano. Desde sua fundação foi porto das riquezas arrastadas do interior profundo do Brasil, e desta maneira o caráter de seu povo foi forjado pela violência e leviandade de oportunistas e aventureiros que não tinham compromisso nenhum com a terra. Este espírito ainda está em voga por aqui, como uma herança maldita de exploradores, colonizadores e desterrados. E é, por outro lado, tão grande a beleza e a generosidade da natureza que jamais nos forçou para uma postura mais moderada e racional com nosso espaço, ao contrário: é como se ainda houvesse muito a ser explorado e arrancado de suas florestas e rios e os primeiros a chegarem serão os beneficiados, enquanto que aqueles que clamam por preservá-los ficam de ingênuos e sonhadores. É preciso dizer que o carioca está para o Rio, neste sentido, como está o brasileiro para seu riquíssimo e vasto país. Em mais um aspecto o povo da Guanabara é caixa de ressonância da mentalidade dos de Pindorama. Imaginem se as considerações de D. João VI vigorassem: de Botafogo para oeste, todo o litoral seria um parque protegido… porque não restaurar este sonho?
“Decidi separar a cidade de seu panorama natural. Sem manipular as imagens, princípio que mantenho em todos os meus trabalhos como fotógrafo, o filme infravermelho camufla o concreto sobre as bordas das montanhas e pedras. Quando isso não é possível, recorro ao filme infravermelho colorido (que também não se fabrica mais), que interpreta como vermelho as matas luxuriantes das florestas, relegando a uma massa branca a cidade que macula a paisagem. Não poderia haver melhor recurso para isso, sem falar na magia em se registrar algo que não se vê a olho nú e que o fotógrafo, em sua razão de existir, descortina para seu público. Um pequeno orgulho que tenho de minha profissão”.
Um recorte do depoimento de Arthur Dapieve
“A ideia de viver num paraíso perdido marca o imaginário dos habitantes do Rio mais do que o de qualquer outro brasileiro graças à espetacular paisagem natural de sua cidade. Entre seus habitantes, sobrevive um sentimento que se assemelha a uma imaginária memória coletiva: o de que a cidade era ainda mais bela, e decerto bem mais pura, antes que a ação do homem, ao menos a ação do homem branco, lhe oferecesse a maçã do pecado, que os seres humanos começassem a se reproduzir sem controle, e que construções começassem a ser erguidas sem ordenamento algum. Este, claro, é um sentimento paradoxal: a cidade seria melhor quando ainda não existia cidade. Portanto, os cariocas vivem sobre os escombros desse paraíso, nostálgicos de alguma data antes de 1555, ano da fundação do primeiro forte francês numa ilha da Baía de Guanabara, dez anos antes da fundação oficial da cidade pelo português Estácio de Sá. Assim sendo, além do banho de mar e do jogging no calçadão, há um exercício bastante familiar ao morador do Rio. Consiste em contemplar a paisagem e limpá-la das interferências humanas numa espécie de Photoshop mental. Saem o Cristo Redentor do alto do Corcovado, as antenas de TV do Sumaré, os bondinhos do Pão de Açúcar, o caos arquitetônico do paredão de prédios à beira-mar, as favelas perigosamente encarapitadas nos morros, o trânsito infernal, a massa de gente a vagar pelas ruas. Sobra tão somente a cidade ideal, ou melhor, sobra a natureza exuberante que é o seu traço distintivo entre as metrópoles do mundo. Nenhuma delas – nem sua “gêmea” do outro lado do Atlântico Sul, a Cidade do Cabo – tem aquelas montanhas e toda uma floresta dentro de si. Mesmo a Floresta da Tijuca, porém, faz parte do esforço de recuperar parte daquele paraíso terreal: ela nasceu de um projeto de reflorestamento empreendido à época do imperador D. Pedro II pelo major Manoel Gomes Archer. O desmatamento causado pelas fazendas de café que cobriam quase todas as encostas da região ameaçava o suprimento de água para a então capital do Brasil.”
“O fotógrafo Renan Cepeda – carioca nascido em 1966, em um dos bairros mais tradicionais da cidade, Santa Teresa, onde ainda reside – faz mais ou menos o que o heroico major fez na Floresta da Tijuca e o que cada um dos seus conterrâneos faz quase todo dia, andando na rua ou da janela de um carro preso num engarrafamento. Graças a registros feitos em infravermelho, ele “refloresta” áreas para sempre perdidas à cidade, além de fixar imagens que de outro modo se perderiam em devaneios individuais. Nesse sentido, o presente livro é como uma viagem no tempo. Por conta do efeito criado pelo reflexo da luz infravermelha em áreas do Rio hoje ocupadas por prédios ou barracos, as construções surgem como ruínas de uma civilização perdida. Difícil dizer, porém, se Cepeda retrocede ou avança, se ele flagra um Rio arqueológico ou se ele antecipa um Rio apocalíptico, depois que seus despojos forem engolfados pela natureza vigilante. Para o próprio Cepeda, a fotografia infravermelha foi uma tábua de salvação. Tendo feito um registro “normal” e casual de uma manifestação de moradores em Copacabana, no final dos anos 1980, ele foi levado para o Jornal do Brasil – então um dos quatro periódicos mais importantes do país – por Carlos Hungria. Lá, Cepeda se profissionalizou na dureza e na diversidade das pautas diárias e na convivência com colegas experientes, como o próprio Hungria, Orlando Brito, Geraldo Viola, Alberto Ferreira, Evandro Teixeira e Chiquito Chaves. Sua técnica se aprimorou no trabalho como repórter fotográfico, para o qual uma jornada poderia incluir partida de futebol, vítimas de chacina e retrato de artista. No entanto, faltava algo para Cepeda, faltava a possibilidade de se expressar de maneira autoral. Ele não queria ser apenas “mais um” e passou a nutrir uma certa ojeriza pela fotografia que se contenta em reproduzir algo que já está à vista de todos. Não que desejasse manipular imagens, alterando-as após a captação, como hoje também é tão comum. De jeito nenhum. A influência do fotojornalismo persistia. Cepeda queria era revelar aspectos ocultos em seus objetos”.
“Filmes em infravermelho deixados por seu pai – um fotógrafo amador que tinha um laboratório em casa – serviram para dar vazão a esse desejo de imprimir uma marca distinta ao próprio trabalho. Cepeda utilizou as horas vagas, que em um jornal nunca são muitas, para começar a registrar uma das cidades mais fotografadas do mundo sob uma outra luz. Literalmente. A infravermelha. Nunca mais parou, embora, a princípio, ainda não soubesse direito qual o propósito. A crise vocacional se agravou no decorrer dos anos 1990. O jornalismo já não lhe dizia nada, e por pouco Cepeda não desistiu da fotografia em prol do cinema depois de ser correspondente da agência francesa Sipa-Presse na cidade. Então, em 2002, quando a galerista Anita Schwartz convidou-o a montar a primeira exposição individual, Cepeda lançou mão das fotos infravermelhas. O sucesso da mostra Invisíveis provou-lhe que o seu lado B poderia se transformar no seu lado A. A partir dali, ele percebeu que conseguiria viver da fotografia de arte. Embora paralelamente tenha desenvolvido outras linhas de trabalho, como o light painting, na qual a iluminação manual e/ou o movimento de câmera criam desenhos de luz, Cepeda desde então transformou as fotografias infravermelhas em sua marca registrada. A fotografia infravermelha permite a Cepeda revelar, mesmo ao mais observador dos cariocas, aspectos desconhecidos de sua cidade, além de materializar aquela visão paradisíaca. Não se trata, porém, apenas de uma questão físico-química. O que realmente valoriza o seu trabalho é como escolhe os ângulos que, aliados à luz tornada visível pela fotografia infravermelha, criam estranheza onde antes havia apenas uma familiaridadeblasée. Pegue-se uma fotografia da pista de atletismo na altura de um dos extremos do Parque do Flamengo, próximo de onde fica o pequeno obelisco em memória de Estácio de Sá, fundador da cidade. O monumento não aparece na foto, encoberto que está pelos ipês-rosas (que fazem pensar na temporada de floração das cerejeiras no Japão). A coloração e a ausência de gente transmite uma sensação de paz cada vez menos compatível com o Rio. A “assinatura” da cidade está em segundo plano e é, nada mais, nada menos, que metade do Morro do Pão do Açúcar, com estação de bondinho e tudo, destituído da majestade quase onipresente nos registros turísticos e publicitários. Ali, com Cepeda, o Pão de Açúcar se torna quase incongruente.”
Sobre o artista
Carioca praticante, de família portuguesa, Renan Cepeda é formado em Mecânica Industrial pelo CEFET-RJ. Começou a fotografar em preto e branco com 11 anos de idade, influenciado por seu pai, um fotógrafo amador. Escolado na experiência do fotojornalismo no Jornal do Brasil dos anos 1980, colaborou também para as maiores publicações do país, e foi correspondente da agência francesa SIPA-Presse no Rio. Dedicando-se hoje integralmente à fotografia de arte, Renan Cepeda é reconhecido pelas pesquisas sobre técnicas fotográficas incomuns, como a fotografia infravermelha e o light painting, tendo sido contemplado por vários prêmios no Brasil e exterior. Em 2010 fundou o Ateliê Oriente com os fotógrafos Kitty Paranaguá e Thiago Barros, seu local de trabalho no bairro de Santa Teresa.
De 16 de abril a 07 de julho.