A Galeria de Arte Mamute, Centro Histórico, Porto Alegre, RS, promove a abertura da exposição “Fulgor na Noite”, da artista representada Camila Elis, dia 10 de novembro, 19h. Com a curadoria de Mario Gioia essa mostra reúne um conjunto de obras inéditas em pintura sobre tela, e integra até 30 de dezembro o roteiro de exibições da Bienal do Mercosul 2022, no projeto Portas para a Arte.
Texto curatorial de Mario Gioia
Em paredes, pisos, vazios, enquadramentos, extracampos, curvaturas, superfícies, traços, texturas e proposições de Fulgor na noite, segunda individual de Camila Elis na Galeria de Arte Mamute, diversos eixos poéticos se coadunam num corpus de obra provocativo e inquieto. Numa investigação que não cessa, ela não se esquiva de embates próprios do fazer diário de ateliê e, ao mesmo tempo, passeia por fantasmagorias e temporalidades, se aproxima dos âmbitos da cosmologia e do fenomenológico, forjando uma bem amalgamada reunião de conceito e matéria a explorar o campo ampliado e contemporâneo da pintura.
“O meu trabalho poético gira em torno das tensões entre corpo, imagem e fantasia. Acredito que, como me utilizo de signos abstratos para tanto, essas relações se dão de maneira rápida e direta. Quero dizer, quando alguém encontra um trabalho meu (e agora descrevo em função de relatos) vê, sente, traduz e simboliza em pouco tempo. Isso se dá por conta do meu interesse maior em sensações físicas, táteis. Utilizo, além dos sonhos, de temas fundamentados em romances e mitologia grega para produzir coisas muito simples, mas muito diretas no espaço” (1), sintetiza a artista acerca do recorte apresentado neste final de 2022.
Fulgor na noite é formada apenas por pinturas, um dado importante na trajetória da artista gaúcha, que desenvolve uma faceta gráfica na produção bem relevante. O conjunto de 14 Sleeping pills, telas em escala mais reduzida – a maioria, seis, de 50 cm x 50 cm -, vem acrescido de cinco recentes peças de maior tamanho. Parte fulcral da exibição de agora se fundamenta em Veladuras, inspirada dissertação de mestrado da artista para a ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo).
Nas conversas com Camila, por e-mail, o título da mostra foi sugerido pelo autor por conta da leitura havia pouco de Relâmpagos, coletânea de críticas de Ferreira Gullar (1930-2016). Nela, Goeldi: Fulgor na noite, lançava conexões não tão óbvias do texto sobre o grande mestre do expressionismo e da xilogravura no Brasil e o recorte atualíssimo da artista emergente. “A cor que costuma ser festa, alegria, seria uma ameaça à voz dramática (de contrabaixo) das gravuras de Goeldi. Mas ele, com mão de mestre, doma-a, dá-lhe raiz em sua linguagem noturna e a faz ali brotar poderosa e verdadeira”(2), escreve Gullar. Na edição, Céu vermelho (1950) ilustra o texto sobre Goeldi (1895-1961).
Na discreta série das 14 pinturas de Camila, há pulsões nada olvidáveis de cor em meio ao negror. Surgem laranjas e avermelhados robustos e assertivos, porém não explosivos. São como existências que não querem sucumbir e que lançam um brilho vital, que não é parco, e, no entanto, não é ostensivo. Quase que como resistências em um ambiente que pode não ser favorável. Resiliências que se revelam pouco a pouco estratégias essenciais para tal matéria.
“O processo de elaboração destes trabalhos é trazer a temática da materialidade, conferindo a cada uma qualidades específicas. Porque, sempre a partir da mancha, começava a pensar as formas com a cor, criando luz dentro da escuridão. São todas fragmentos de movimentos, de sensações, de coisas com dimensões internas e oníricas, inventariadas na memória”(3), relata a artista sobre o conjunto em sua dissertação. “Para além de serem exercícios de cor e de luz, tornam-se exercícios de fantasia. 14 Sleeping pills concernem o sono, o sonho também.”(4) Camila também conta a influência da vista ao vivo da obra-prima A morte de Sardanapalo (1844), de Delacroix (1798-1863), e é evidente na tela do romântico o duo desfoque/vibração, habilmente lidado hoje por ela – é bom frisar que, para Camila, viver e estudar em 2016 no Reino Unido pôde gerar repertório importante em sua formação. Também deve se comentar que Da alma, e as coisas suspensas, individual da artista no mesmo espaço, em 2019, tinha lastro em mitologia grega e na Renascença, a partir da história de Psiquê e Eros retratada nos afrescos de Rafael realizados na Villa Farnesina, em Roma, nos anos de 1517-18.
Já a configuração dos trabalhos mais atuais apresentados em Fulgor na noite poderia ganhar o título de Pinturas moles pela autora. Formalmente se ligam a quadros já vistos em momentos anteriores expositivos dela. Reflexo da aurora e O úmido medem 150 cm x 140 cm. Calor lunar e O macio são de 137 cm x 150 cm. E 4 horas da madrugada tem 95 cm x 80 cm. Exceto o último, são óleo e carvão mineral sobre linho (Em 4 horas…, não é utilizado carvão). Nos três citados inicialmente, há destacada presença daquele laranja-avermelhado citado. Ao lado de O macio, que se mostra já no próprio título, podem ser encarados como peças solares, otimistas. “Mole é uma matéria que tem corpo e por isso pesa”(5), salienta Camila sobre as novas telas.
Assim, a artista acredita que conseguiu ir em direção de uma mais nítida divisão entre desenho e pintura, além de articular mais uma poética da encenação e do drama junto de explorações sobre corpo, matéria e olhar. Nessa perspectiva entre, híbrida e multifacetada, tal pictórico mais flexível e permeável pode ficar perto de visadas e investigações tão nacionais como a levantada pelo neoconcretismo, da série Obra mole, de Lygia Clark (1920-1988), dos anos 1960 iniciais, por exemplo. Ou seja, essa fragilização da racionalidade do concreto, esse tipo de geometria sensível, brilhantemente desenvolvida por grandes nomes da arte brasileira, provoca ecos não literais sobre pensamentos e práticas dos artistas do agora, que são atravessados e contaminados por contextos atuais críticos.
No caso de Camila, o isolamento deflagrado pela pandemia, a virtualidade das relações humanas, a superficialidade, o esvaziamento e o franco combate ao debate público mais racional, entre variadas chagas novíssimas, disparam procedimentos e situações outros na produção, mesmo que ainda difíceis de se determinar com exatidão. “Sempre utilizei memória para pintar e desenhar, mesmo antes da pandemia. A diferença é que, durante este período, a memória crescentemente parecia ser o que nos restava”(¨6), conta a artista.
E é gratificante perceber no conjunto de Fulgor na noite exemplos plástico-visuais que fogem de uma interpretação linear, estanque e lógica. 4 horas da madrugada abriga algo do matérico palpável em 14 Sleeping pills, se vale do basilar óleo sobre linho e é um objeto que não tem óbvia leitura. Distancia-se e, num mesmo golpe, pode coexistir com as Pinturas moles do mesmo período. Atesta a liberdade persistente da práxis de Camila Elis, que consegue ler Cy Twombly, Luc Tuymans, Daria Martin, Merleau-Ponty e uma certa melancolia da pintura do Sul, em tempos que incensam solipsismos vazios e encenações cotidianas desprovidas de razão. Não é pouco.
Mario Gioia – Curador e crítico de arte
Entrevista da artista para o autor, via e-mail, outubro de 2022.
Gullar, Ferreira. Relâmpagos – Dizer o ver. São Paulo, Cosac Naify, 2003, p. 120
Schneider, Camila Elis. Veladuras: Notas sobre a prática em pintura e desenho. Dissertação de mestrado – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 95, 2022.
Schneider, Camila Elis. Op. cit., p. 95.
Entrevista da artista para o autor, via e-mail, outubro de 2022.
Schneider, Camila Elis. Op. cit., p. 25.