Trabalhos gráficos inéditos da artista plástica Magliani encontram-se em exibição na Galeria Aldo Locatelli do MARGS, Centro Histórico, Porto Alegre, RS. Artista múltipla, Maria Lídia Magliani, Pelotas/RS, 1946 – Rio de Janeiro/RJ, 2012, foi pintora, desenhista, gravadora, escultora, ilustradora, figurinista, diagramadora, capista, figurinista, atriz e cenógrafa. O traço forte e as imagens marcantes dos desenhos de Magliani estamparam as páginas de diversos jornais brasileiros nos anos 1970 para denunciar os abusos e o sofrimento da época da ditadura militar no Brasil. A mostra apresenta 25 desenhos e dois exemplares encadernados do Jornal Versus, pertencentes à coleção de Omar de Barros L. Filho. As técnicas usadas são: desenho a nanquim sobre papel vegetal; colagem sobre papel vegetal; e técnica mista sobre papel vegetal.
Em um tempo em que a redação dos principais jornais brasileiros dava voz ao sentimento de indignação da população frente aos excessos da ditadura militar, era comum os editores, como no caso do Grupo Caldas Júnior, no jornal Folha da Manhã, escolherem pessoalmente quem iria dar personalidade às matérias, a partir das ilustrações. Nesse momento, Magliani entrava em cena com suas ilustrações.
Texto do jornalista Omar L. de Barros Filho
Magliani e eu
Nos últimos meses de 1976, eu vivia e trabalhava em S. Paulo como editor do jornal Versus, importante publicação cultural e política fundada pelo jornalista gaúcho Marcos Faerman. Fazia algum tempo que não encontrava com Magliani. Nossos últimos contatos pessoais ocorreram na redação da Folha da Manhã, da Caldas Jr., em Porto Alegre, onde ela atuava como ilustradora, depois promovida à diagramadora, e eu como repórter. Certo dia, Magliani surgiu do nada carregando uma carpeta plástica vermelha no velho sobrado da Rua Capote Valente, em Pinheiros, onde funcionava o Versus. Embora rápida, a visita durou o suficiente para uma conversa afetiva entre amigos que não se viam há algum tempo e também para que ela, ao final, exibisse 29 desenhos que trazia de Porto Alegre como presente, para que eu zelasse por eles e os publicasse em Versus, quando julgasse apropriado. Fiquei surpreso e feliz com a generosidade de Magliani para com o jornal, que dependia de colaborações para manter sua sobrevivência sob as perseguições e restrições impostas pela ditadura.
Da coleção que me foi entregue, utilizei duas peças como ilustrações em uma matéria assinada pelo repórter Percival de Souza, intitulada “A Jaula”, um ensaio sobre a violência nas prisões. Como abertura do texto publicado em duas páginas, escrevi um “olho” que dizia: “Este repórter, há muitos anos, percorre os presídios. Hoje, ele sabe que nada é impossível. Nem as histórias que conta”. Em página dupla, as duas expressivas obras de Magliani mostravam, na primeira, uma figura humana deformada, presa por uma camisa de força e cercada por rostos também disformes atrás de uma cerca de arames. A segunda delas, no alto da página, obrigava o leitor a fixar a imagem de um homem em negro e branco, do mesmo modo aprisionado, mas trespassado por pesados alfinetes cravados na cabeça, no coração e no estômago. Versus completava seu primeiro de vida. Na redação paulistana, a passagem de Magliani foi devidamente reconhecida, ilustrando as páginas mais importantes daquela edição (Versus nº 6, págs. 30 e 31, 15/10 a 15/11, 1976).
Em maio de 1977, Versus publicou uma quarta capa de autoria de Magliani, quase um cartaz, com a palavra “CHOQUE”,quase gigante em magenta sobre preto. A ilustração de Magliani abusava da página, encimando três brevíssimos episódios narrados pelo psiquiatra Marcondes Farias Costa, diretor do Hospital Portugal Ramalho, em Maceió. No mesmo estilo dos desenhos anteriores, Magliani retratava asperamente uma cabeça em profunda agonia e dor, coberta por fios elétricos pretensamente terapêuticos. (Versus nº 15, pág. 44, 05/1977)
De lá para cá, 40 anos se passaram. Considero um privilégio que a vida me reservou manter íntegros estes trabalhos de Magliani, com exceção dos desenhos impressos em Versus que, muito provavelmente, desapareceram da redação para sempre,quando nosso jornal foi invadido e interditado pela polícia em 1979. Daquela aventura restaram osdesenhos que aqui estão reunidos e apresentados juntos pela primeira vez. São ilustrações feitas para jornais de Porto Alegre e alguns livros editados por amigos, cujos sentimentos Magliani sabia cultivar com carinho.
A variedade dos temas abordados por ela indicam como os editores dos jornais locais trabalhavam naquela época, os desenhos a serviço dos textos, complementando-os por encomenda: crime, polícia, economia, cidade, internacional e esporte eram as solicitações mais frequentes. Já as imagens especialmente produzidas para obras literárias, antes de tudo mostram os primeiros passos da artista e a profundidade de seu amor por aqueles que com ela dividiam suas melhores fantasias – Caio Fernando Abreu, Sergio Capparelli e outros tantos talentos que surgiram ou sumiram em coletâneas poéticas e de contos.
Até 15 de maio.