A exposição “Manfredo de Souzanetto “Paisagem ainda que”, entra em cartaz na Galeria Bergamin, Jardins, São Paulo, SP. Manfredo de Souzanetto é um dos nomes de ponta da arte contemporânea brasileira com vivência curricular profissional internacional.
Paisagem ainda que
Manfredo de Souzanetto – COR LOCAL
A presente mostra de Manfredo de Souzanetto na Galeria Bergamin, São Paulo, reúne uma seleção de quarenta anos da carreira do artista mineiro radicado no Rio. Fotos, pinturas e esculturas participam de uma trajetória iniciada em Belo Horizonte e amadurecida em Paris na década de 1970 que ainda hoje segue seus passos cadenciados e seguros. Nela se percebem dois traços característicos, frequentemente entrelaçados: a reflexão sobre a paisagem e a investigação de possibilidades em aberto para a pintura na contemporaneidade.
Desde o início a paisagem se colocara como um dado decisivo para o artista: a série de “postais” e um adesivo criado por ele chamavam a atenção para o desaparecimento por completo de montanhas por conta da mineração. Não deixava de haver um traço crítico e nostálgico perante essa transformação brutal da natureza, mas junto a ela vinha também a divagação simultânea sobre a estranha situação inerente à imagem fotográfica (ser o registro de uma memória e da perda de algo; aquela paisagem só sobrevive enquanto vestígio na imagem), uma reflexão sobre o trabalho artístico (bem como da atitude do espectador) de que criar um espaço é projetar literalmente a imaginação sobre o vazio. E, no que concerne a um problema “interno” da arte, tratava-se de estabelecer uma relação efetiva (e afetiva) com um determinado espaço cuja poesia não dependesse do recurso a mera representação lírica – isto é, a interpretação inspirada de uma cena, como, a título de comparação, fora a base de trabalho do romantismo um século e meio antes – e sim de uma encarnação física, uma (literalmente) corporificação de um motivo permeado de interesses tão distintos quanto uma luz especial ou um sentimento memorialista-nostálgico. Afinal, a arte moderna ensinou-nos que tudo isso era cabível na paisagem. O que ocupou as gerações posteriores era saber como reinventar essa relação. No caso de Manfredo, o que principia com os postais, cujas fotos são “retocadas” com a linha daquele espaço tornado invisível com sua desaparição, é de, partindo de um objeto essencialmente criado como souvenir, colocar-nos à prova de lembrarmos algo que talvez não tenhamos conhecido ou percebido, mas de cuja existência, não obstante, jamais duvidamos. A pressuposta impessoalidade de um objeto como o cartão-postal apenas reforça o descompasso visual de querer ver algo não mais disponível e malgrado seu fim, continuar crendo em sua existência. Mas, no fundo, não teria sido sobre isso que a paisagem sempre falou, desde quando promovida de um gênero secundário para a linha de frente da pintura moderna? Ao fim – e notaremos isso nas pinturas posteriores de Manfredo, o que se coloca é um convite ao espectador para reposicionar e alargar seu olhar. Isso mostra-se claramente quando nessas pinturas, o espectador não vê, mas entrevê e quase toca uma paisagem ali depositada.
Para Manfredo, a pintura (linguagem a que o artista também se dedica há décadas) se concentra na disponibilidade de exploração intercambiável e ilimitada de seus termos, mesmo que admitida uma quantidade limitada de variáveis. Das três gerações de artistas com as quais ele convive (daquela dos anos 1970 até as mais jovens, passando pelos anos 1980), talvez seja um daqueles que mais valorizou uma artesania em seus trabalhos. A plasticidade ganha um sentido alargado quando consideramos que a gestação da forma começa no esboço dos chassis. A pintura vai além da divagação a respeito de como ela corre ou se deposita sobre a superfície (ainda que isto seja algo que lhe interessa, ao nos determos na consistência argilosa de alguns planos), mas da superfície propriamente dita como problema de base e de conclusão da pintura, dado ela constituir as coordenadas a partir das quais, não importa qual noção de composição, dever-se-á por conta dela – e não de convenções assentadas passivamente – encontrar suas soluções. Isto porque mesmo quando o suporte é o retângulo mais comum, ativa-se sua opacidade inescapável enquanto geratriz do espaço. Se a sua silhueta admite qualquer desvio de seu formato usual, intensifica-se a constatação de que a pintura começa a partir deste dado material, ao qual conjugam-se outros, como a espessura sensual e corpórea do pigmento.
A artesania, portanto, não se manifesta na busca de um gestual marcado e único, mas nessa relação “orgânica” entre os materiais, deles obtendo resultados particulares, graças também a sua potencialização (isto é, eles não são nem dóceis nem inertes, podendo assumir diferentes aspectos). Seja ao decantar seus próprios pigmentos na produção das tintas (pigmentos estes, importante lembrar, extraídos das terras mineiras) ou ao desenhar os chassis das telas, Manfredo alarga e repensa o processo da pintura para além do preenchimento da superfície com pinceladas, entendendo-a como algo cuja espacialidade – tanto virtual da forma pintada quanto literal do objeto (o suporte) – começa a ser gestada na confecção mesma dos materiais. Isto fica claro nas obras surgidas a partir dos anos 1980, em que, por conta dessas diversas silhuetas dos chassis, a pintura ganha uma progressiva volumetria escultórica, na qual a composição do espaço interno da tela e seu formato tendem a coincidir, fazendo com que uma não seja apenas o “preenchimento” da outra. Complementa-lhe um sentido quase “arquitetural” da cor, que em sua delimitada gama, explicita a extensão do suporte, proporcionando-lhe um peculiar ajuste junto a parede, pois se a pintura tende com sua distensão homogênea a ajustar seu plano à continuidade da parede, ao mesmo tempo salta para além dela, dadas as reentrâncias e silhueta prismática da tela. Atentando para este fator mais cuidadosamente, vemos que ele parte de um prolongado debate da cultura moderna acerca da monumentalidade, por conta do dilema ocorrido entre o desejo de uma pintura com escalas ambiciosas e a preservação da regularidade, continuidade e ajuste da volumetria homogênea da parede e do prisma arquitetônico. Os planos largos de Manfredo apontam, por um lado, para este ajuste ponderado entre a pintura, sua superfície e a continuidade justa do lugar onde se escora (ou seja, a preservação do ritmo e simplicidade da parede); porém explora a dualidade dessa pintura não sublimar, mas, ao contrário, enfatizar sua histórica (e tensa) atitude de ecoar e duplicar o paralelismo dos planos pictóricos e o da parede. Quando, porém, o plano pictórico é vazado ou eviscerado por uma aresta protuberante ou um corte revelador do anverso da tela, a pintura é solicitada a reconhecer os complexos pactos entre ela e o muro, quebrando qualquer pretensão de naturalidade supostamente atribuída à parede. Nisto, pois, se revela a faceta escultórica desses quadros.
Na esteira destes pequenos achados aparecem os elos entre aqueles dois traços marcantes de sua produção acima indicados. Já em suas primeiras investidas na pintura, Manfredo recorria àquele caráter inerente à dinâmica da imagem. Conforme afirmado aqui, o fator emblemático da imagem é ela ser um resíduo de algo não mais visível. Do mesmo modo, nesses trabalhos iniciais o artista construía uma “pintura incidental”; as sutis e indeléveis camadas de cor diante de nós são, na verdade, a tinta vazada do verso da tela, ou seja, a pintura resulta de sua saturação. Por outro lado, a cor compacta dos trabalhos seguintes – a persistir ainda hoje – retoma a ligação com a paisagem. O pigmento decantado guarda consigo uma condição instigante: se ele fala de uma coisa que talvez não exista mais (uma montanha, para usar um exemplo forçado, mas não casual), é porque esta mesma coisa se metamorfoseou pelo corpo-cinzas do pigmento em uma outra entidade, isto é, o corpo do pigmento não deixa de ser uma cinza da paisagem também. É e não é a carne de uma paisagem perdida. A paisagem está (se não é) no pigmento, na cor. Há, por exemplo, a famosa história de Chopin que levou consigo uma caixinha de prata com terra da Polônia. Era bom ter sempre por perto algo especial, literalmente um pedaço de memória. Manfredo, nesse aspecto, não age diferente: a paisagem não precisa ser figurada porque ela – e todos os sentimentos que a envolvem – estão ali germinados no pigmento. Trata-se, porém, de mais do que uma pintura de paisagem; é uma pintura com a paisagem, uma pintura da paisagem, visto que ela é feita mais do que a partir da terra, do sentimento da terra.
Texto crítico: Guilherme Bueno
De 09 de junho a 10 de julho.