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AGENDA CULTURAL

Miró no Instituto Tomie Ohtake

O Instituto Tomie Ohtake, Pinheiros, São Paulo, SP, organizou e inaugurou “Joan Miró. A força da matéria”. Esta é a maior mostra dedicada a Joan Miró no Brasil. A exposição reúne mais de 100 obras do artista, entre pinturas, esculturas, desenhos, gravuras e objetos (pontos de partida para a criação de suas esculturas). Na composição da mostra, fotografias sobre a trajetória do genial pintor catalão.
A mostra ficará em cartaz em São Paulo até 16 de agosto, e seguirá para o MASC – Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis, de 02 de setembro a 14 de novembro.
Texto
O texto de “Joan Miró – a força da matéria” , do escritor Valter Hugo Mãe, integra o catálogo da exposição. Confira um trecho abaixo:

 

A reinauguração da cultura, sobre Joan Miró

 

“Las miradas son semillas, mirar es sembrar Miró trabaja como un jardinero y con sus siete manos traza incansable – círculo y rabo, io! y ah! – la gran exclamación con que todos los dias comienza el mundo.”
Octavio Paz

 

A morte da pintura está para Joan Miró como a morte de deus esteve para Friedrich Nietzsche. Foi fundamental que saísse da equação para que o exercício da arte, que é o mesmo que dizer vida, correspondesse à mais do que genuína personalidade do mestre catalão.

 

 
A desmistificação é ponto essencial para o domínio da identidade. Alguns artistas não consentem, nem remotamente, com propagar o expectável. A arte, em sua superior oportunidade, é mais o enunciado de um novo postulado do que a obediência a quaisquer premissas estabelecidas. Ou, como diria Merleau-Ponty, a arte “é antes a realização de uma verdade do que o reflexo de uma verdade prévia” (Merleau-Ponty, 1999). Para Miró, por essência, a arte foi sempre um imperativo de liberdade. Se quisermos simplificar o seu aparecimento no mundo podemos declarar que se definiu exatamente por uma fúria imprescindível pela liberdade. Ao manifestar-se interessado em assassinar a pintura está a dizer que quer ser sem ser o mesmo. Quer ser sem ser o mesmo, o que justificaria o seu constante modo de fuga, desatando obrigações para com academismos prévios e, sobretudo, impiedosamente divergindo de si, a cada tempo começando outros métodos, explorando outros materiais, problematizando estilos, tão surpreso quanto sempre angustiado pela compulsiva busca.

 

 
Joan Miró atravessa o pior do século XX. Numa Europa em guerra, plena de ideologias totalitárias e predadoras, a sua origem catalã será invariavelmente um radical para permanente inconformismo e protesto. Uma espécie de mácula afetiva, como um pecado original de que ele se orgulharia e pelo qual se bateria sempre. A passagem por Paris, fundamental para a sua depuração, nunca lhe roubaria a convicção de ser catalão, coisa que evidenciaria constantemente na obra como linha de força e também como digno sofrimento. A liberdade possível é sempre uma ansiedade na assunção de uma identidade. Para Joan Miró, a Catalunha foi a base para todas as ansiedades, lugar plástico e espiritual de onde retiraria as referências mais recorrentes e inelutáveis, como quem cataloga os tópicos materiais de uma alma. Faria arte como quem é e como quem luta.

 

 
Discursando na sua distinção durante o Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Barcelona, em 1979, Miró terá dito: “Quando um artista se expressa num contexto em que a liberdade é difícil, deve converter cada uma das suas obras numa negação das negações, numa libertação de todas as opressões, de todos os preconceitos e de todos os falsos valores estabelecidos.” (Punyet-Miró 2014). Antoni Tàpies, claramente influenciado pela obra de Miró e por ele também instigado a um mesmo brio para com a Catalunha, viria a declarar que “o impacto clandestino da obra de Joan Miró, como também a de Picasso, foi uma contribuição importantíssima para uma tomada de consciência que não se reduzia, é claro, aos problemas da estética, mas sim, como provoca todo o criador, se estendia a toda a vida. (…) Miró gozou com todos os oficialmente bem pensantes, porque ninguém demonstrou como ele o fracasso e a inutilidade de todas as falsas hierarquias que perdem o tempo a condecorarem-se, e depois têm de correr precipitadamente atrás dos passos dos que realmente fazem caminho.” (Tàpies, 2002). Neste sentido, é importante entender que a assunção de uma identidade nunca foi um modo de fechar o sujeito, ou a arte, num lugar ou num tempo, muito pelo contrário. A identidade é o único modo de converter um sujeito, ou a arte, num tópico de respeito universal. Vale a pena atentar no diz Joan Punyet-Miró, ponderando acerca da atenção de Miró à cultura de outros lugares, como a chilena, e estabelecendo um paralelo com outros génios seus contemporâneos, como seriam Picasso e Dalí: “havendo criado uma poética artística universal, transladam-se mais além do limite nacional, político ou geográfico, para acabar sendo de qualquer lugar e de lugar nenhum por vezes.” (Punyet-Miró, 2014).
De outro modo, a urgência pela oportunidade de uma realidade própria era já coisa antiga no espírito de Joan Miró. Contrário à padronização e fascinado com a amplificação dos sentidos, diria: “Quando saía com o meu pai de casa e lhe dizia que o céu era violeta, zoava de mim. E isso dava-me muitíssima raiva.” (Dupin, 2004). Para Miró era claro que o artista não podia simplesmente existir à maneira do mundo. O mundo precisava também de existir à maneira do artista.

 

 
O criador é um distúrbio no universo da continuidade. Lembro sempre uma passagem de Clarice Lispector, no livro Água Viva, para ponderar acerca destes assuntos: “Minha liberdade pequena e enquadrada me une à liberdade do mundo – mas o que é uma janela senão o ar emoldurado por esquadrias?” (Lispector, 2012). Do mesmo modo, a tela branca de um pintor, como assim a folha de um escritor, se apresenta também como uma ordem já bastante imposta à imaginação que se debate para materializar. A tela branca é uma regra, que Miró haveria de problematizar e contra a qual haveria de se rebelar inúmeras vezes. Miró foi a mais frequente perturbação de toda e qualquer continuidade artística.
Miró, que se assumiu um pessimista, um homem profundamente insatisfeito, buscava na arte a transgressão a todas as coisas, não apenas aos cânones estabelecidos, ele lidava com algo incrivelmente mais poderoso e que se punha como uma revelação cosmogónica, uma certa reinauguração da expressão, para uma expressão mais pessoal e, ao mesmo tempo, universal. O caminho mais verdadeiro para a universalidade acabou por encontrá-lo no aprofundamento constante da sua própria consciência. É na meditação sobre si mesmo e suas raízes que o mestre pode tornar-se infinitamente sapiente e conservar todo o esplendor e a frescura mais típicos do que é começador ou menino. A verdade, dentro dele, é um diamante que se reparte em todos os gestos, sempre puro na sua essência. Fácil se torna de entender porque na candura de tantos dos seus trabalhos, mesmo dos que discorrem sobre assuntos difíceis ou violentos, há uma espécie de reaprendizagem do gesto artístico ou um primitivismo que tinge tudo de espontaneidade, de originalidade. Nenhum outro artista moderno logrou tal grau de originalidade.
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