A fotógrafa Romy Pocztaruk exibe em exposição individual na SIM Galeria, Batel, Curitiba, PR, com fotos e vídeos realizados em diversos países que viajou observando os detalhes arquitetônicos das cidades que foram sedes de Olimpíadas durante a história. O mote é o Brasil, o próximo país olímpico, em 2016. A mostra, denominada de “Um, vasto mundo”, apresenta imagens das vilas olímpicas de Berlim, na Alemanha, que organizou o evento esportivo em 1936, e Saravejo, na Bósnia, sede de 1984. A partir dos resquícios abandonados, na maior parte das vezes instalações em ruínas, a artista rastreia o impacto do evento, que caracteriza como “apocalíptico”. A curadoria é de Gabriela Motta. Destaque da cena nacional, Romy Pocztaruk inaugurou exposição individual no Santander Cultural, Porto Alegre, RS, e participa da delegação brasileira na atual edição da 31ª Bienal Internacional de São Paulo.
Um vasto mundo
O exercício de olhar, olhar, olhar e de novo olhar estas e outras dezenas de imagens traz à tona uma constante no percurso da Romy: a viagem como trabalho. Amazonas, Islândia, Uruguai, Alemanha, Nova Iorque, Bósnia, China são algum dos lugares para os quais a artista apontou sua câmara. No entanto, ao ver as imagens, salvas poucas exceções, não é possível dizer precisamente em qual país cada uma delas foi feita. Os trailers estacionados estão na Islândia ou no Uruguai? Os restos de concreto tomados por vegetação são sobras de obras em Manaus ou em Sarajevo? O carro funerário está ao lado de um prédio administrativo ou do muro de Gaza ou de uma igreja em Reykjavík? A resposta “certa” dessas perguntas é sempre a segunda opção: Uruguai, Sarajevo e Reykjavík; mas a insistente indefinição geográfica das imagens conduz a outras reflexões.
Quando se sabe em que lugar cada fotografia foi feita, claro, contextualizam-se as imagens, atribui-se a elas uma história, um clima, uma identidade. No entanto, tudo isso logo se perde novamente, fazendo emergir do conjunto de trabalhos uma tônica dominante que revela não o específico de cada lugar, mas o comum de todos eles. Essa imprecisão dos locais nos leva à compreensão de um mundo não delimitado por fronteiras políticas, aquelas que acabam sempre, em algum momento, gerando guerras, mortes, destruição. Uma constante entre tantas outras que nos definem.
Ao reconhecer a importância da viagem para o trabalho da Romy, é preciso comentar esse tipo de procedimento em relação à arte como um todo. Muito se fala de uma pegada etnográfica da arte contemporânea. Pelo menos desde os anos 1970, identifica-se uma parcela de artistas preocupada em investigar/entender outros mundos além daquele que lhes diz respeito. Isso também, reiteradamente, aponta para a fragilidade desse modo de agir, geralmente moldado por vícios de um olhar exterior aos contextos, incapaz – porque é mesmo impossível – de se libertar de seus próprios códigos. De fato, esse problema já era reconhecido pelos próprios etnógrafos, como Lévi-Strauss, que falava da equivalência das culturas e da limitação de falar de algum povo sem fazer parte dele.
Quando a imagem fotográfica é o principal meio através do qual se materializa a obra de um artista, por sua vez, construída a partir de andanças pelo mundo, a relação com esse outro se complica ainda mais, já que a tendência é associar a fotografia à realidade. Por mais que já tenha se escrito muito sobre o risco de se entender a fotografia como meio privilegiado para tratar do real, ainda costumamos vê-la como apreensão e registro de alguma verdade. Entretanto, a única verdade de uma foto é sua própria realidade, tamanho, cor, contraste, textura, recorte de imagem. Elas até podem partir de um “real”, mas jamais irão além daquilo que enquadram, do espaço que escapa à lente do fotógrafo.
Assim é que a obra da Romy, o recorte aqui apresentado, se situa entre um procedimento etnográfico que não tenta destacar do estrangeiro seu exotismo e o entendimento da fotografia enquanto imagem construída. No olhar da artista sobre o “outro”, sobre a paisagem cultural estrangeira, há pouco sobre o específico de um povo, de uma região, de um país. Nessas fotografias, há muito sobre o que nos equipara, sobre o que nos torna sempre o mesmo homem, que destrói, constrói, arruma a casa, transporta seu mundo sobre quatro ou duas rodas. Entender-se como igual, nem mais, nem menos, nem melhor, nem pior é um partido que não necessariamente nega as singularidades da cada indivíduo, mas assume aquilo que temos em comum como o verdadeiramente extraordinário de todos nós.
Ao mesmo tempo, esses trabalhos de Romy insistem em nos lembrar que, como as palavras desse texto, fotografia é linguagem. Enquanto linguagem, essas imagens não encerram um sentido, e sim uma multiplicidade de significados, tanto sobre suas características individuais quanto sobre o real do qual partem, bem como sobre quem as fez. Porém, ao contrário do que se poderia concluir, a autonomia dessas imagens não as retiram do mundo do qual partem. Essas fotografias, ao se apresentarem também como linguagem, assumem a ambiguidade do meio, contribuindo para o sentimento de dúvida gerado pelo conteúdo das imagens.
Arrumar a casa
Dois interiores. Duas salas arrumadas, cores, flores, cadeiras, quadros na parede. Um ambiente doméstico que, em breve, receberá quem vive ali. Duas casas, uma na China e outra na Amazônia. Tão distantes e tão próximas, porque feitas por gente: cabeça, ombro, joelho e pé. Tudo igual, tudo radicalmente o mesmo e diferente. O instante captado no relógio da casa brasileira também permite congelar o tempo na China. Enquanto aqui o sol está prestes a atingir seu ápice, lá a noite já chegou. No dia seguinte, o ciclo se repetirá, as tarefas do dia serão realizadas, as cadeiras receberão o peso dos corpos. Talvez nossa maior diferença não passe das onze horas de fuso horário que nos distanciam.
Habitar espaços
Há um conjunto de fotografias de rastros de ocupação no interior de algumas ruínas. Não se sabe por que essas construções foram abandonadas. Intui-se que, como sempre, a violência ou o descaso esvaziaram esses lugares. Nas três imagens, janelas se abrem para o exterior, fazendo com que o ar atravesse esses ambientes, arejando-os. As carcaças desses prédios e os vestígios de novos usos dessas estruturas fazem com que se sobressaia dessas imagens muito mais uma noção de transformação do que de pesar. Ao mesmo tempo, a dramaticidade das fotos apresenta esses lugares como cenários. Assim como aqueles que, possivelmente, ali realizaram um ritual, uma pintura, um espetáculo teatral, Romy também ocupa esses lugares, enquadra-os atenta às sobreposições temporais e de uso que abrigam.
Inventar imagens
A imagem de quatro colunas que abre a exposição se conecta àquela de uma construção no deserto. Enquanto a miragem que vemos ao longe é “real”, uma construção perdida no meio de um mundo de areia, as colunas, altivas e imponentes num outro deserto, são “falsas”, restos de um set de filmagem. Esse jogo entre o que é visível e o que não é – por exemplo, quando vemos as colunas, mas não vemos sua artificialidade – se revela agudamente nessas fotografias e atravessa todas as obras aqui reunidas.
Romy manipula habilmente aquilo que tem em mãos, o aparato tecnológico capaz de gerar imagens. A máquina a serviço de um olhar que se quer sempre múltiplo, ambíguo, abrangente. Assim, a artista compartilha com o espectador um olhar perplexo com uma certa dureza do mundo. Mas, sobretudo, nos convida a duvidar dessas e de todas as imagens e de qualquer ideia de verdade absoluta.
Gabriela Motta
Até 31 de outubro.