Como é de praxe, a galeria Laura Marsiaj, Ipanema, Rio de Janeiro, RJ, apresenta simultaneamente dois artistas. Os escolhidos para a abertura da temporada 2013 são: Paulo Meira e Carolina Martinez.
Paulo Meira apresenta sua exposição individual “La cumparsita”, composta de pinturas e um vídeo performance. As pinturas de “La cumparsita” representam diversos personagens, em estilo clássico do gênero “pintura de retrato” (óleo sobre tela em dimensões variadas), em metamorfoses de seres humanos e animais selvagens. O antropomorfismo, nas pinturas de “La cumparsita” decorre inicialmente da exploração exaustiva da própria imagem do homem, num exame cruel de suas possibilidades através da combinação da figura humana com uma infinidade de outros seres.
No vídeo “La cumparsita”, um homem dança ao som de “La cumparsita”, tango dos mais conhecidos de Carlos Gardel, tendo como parceria, um compasso de dimensões alteradas (medindo 1,78 metros).
A dança, que ocorre em diversos ambientes, sugere uma íntima relação entre o homem e o “seu” objeto técnico (o compasso gigante). De tal intimidade, emerge a perversão própria desta relação, na qual o dançarino, ao compactuar com o compasso, distorce e reloca o destino que o funda: entre as funções de um compasso, destaca-se a leitura de mapas e cartas náuticas para calcular equivalências entre tempo e espaço de deslocamentos. Ora, em “La cumparsita” a dança executada com esse instrumento de precisão, como se vê no vídeo, compactua antes com a arte, pois desafia a ordem de um mesmo e preciso compasso.
Carolina Martinez no Anexo
Aproveitando-se do formato de cubo branco e da falta de janelas do Anexo, a exposição de “Às avessas”, individual de Carolina Martinez assume uma engenhosa e delicada operação metafórica: trazer o exterior para dentro de uma casa. Deslocando a imagem do cubo como lugar expositivo para a de um cômodo, a artista confunde a nossa percepção sobre o espaço. É um cômodo/casa às avessas. Suas pinturas alegoricamente transformam-se em fachadas ou janelas, não apenas pelo fato do objeto (pintura) possuir um tamanho aproximado de janela mas pelo que ilustra ou exibe: são persianas, beirais, correspondências imagéticas à ideia de exterioridade. Porém ao mesmo tempo em que “exibe”, a obra de Martinez oculta. São janelas que não se abrem ao exterior mas que mimetizam a ideia de um outro lugar. Não há nada para ser visto, apenas imaginação, especulação. Contudo, há um investimento romântico nesse trabalho que nos leva a acreditar que naquele fragmento, em um pedaço metafórico de paisagem, pode estar o todo, e que essa experiência não pode ser desqualificada por uma racionalidade inibidora.
A ilusão óptica que habita suas primeiras pinturas – uma suave combinação entre tinta automotiva e verniz sobre madeira – criando uma dualidade entre a ideia de figura e fundo é transferida para esse ambiente instalativo. Estes trabalhos possuem pontos de contato com os Espaços virtuais: Cantos (1967-68) e os Volumes virtuais (1968-69) de Cildo Meireles. Tal como esses últimos, as obras de Martinez são “desenhos” que utilizam três planos para definir uma figura no espaço. Ademais, cada um dos dois artistas a seu modo, realiza a transição do espaço bidimensional para um ambiente escultórico que se assemelha a uma casa. Paira sobre essas obras uma inversão das escalas. No caso de Martinez, o cubo/quarto/cômodo vira casa; o rodapé deixa de lado a sua insignificância e passa a ser o eixo central constituindo perímetros, áreas ou cantos de sólidos assim como ocorre nos Volumes Virtuais; e, finalmente a natureza é reduzida ou ampliada dependendo de como o espectador investe o seu olhar para o território criado pelas linhas econômicas, suaves e delicadas de suas pinturas.
A linha que atravessa a exposição – presentificada no rodapé que perde a sua função utilitária e ganha corpo, volume e massa adquirindo por si só um estatuto escultórico – é aquela presente nas obras pictóricas de Martinez. O rodapé que foge ao controle da racionalidade significa a transposição de sua pesquisa pictórica para a tridimensionalidade. Ao mesmo tempo em que a artista constrói um espaço que ao invés de oferecer a paisagem ao espectador encerra-se nele mesmo (estão ali contidos a casa, a paisagem e a arquitetura), tudo na exposição está em movimento. Não são, portanto, imagens ou objetos estacionários, mas em constante trânsito. Figuram paradoxalmente entre a máxima presença e a máxima ausência.
O artificial e o real, o inventado e o concreto, o original e a cópia, a imagem e seu referente não “se dividem mais segundo uma dicotomia serena, mas mantêm relações fluidas” (1), que abrem caminho a um pensamento do verossímil. “Às avessas” nos revela que a realidade não é mais exatamente a mesma: ela é duplicada, confrontada, e reforçada pela ficção.
(1) Cauquelin, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007, p. 109.
De 22 de janeiro a 28 de fevereiro.