O artista brasileiro Ernesto Frederico Scheffel – radicado na Europa – reconhecido internacionalmente lançou autobiografia durante a comemoração pelos 35 anos da Fundação Scheffel que abriga suas obras em Hamburgo Velho, Novo Hamburgo, RS, onde estão suas mais de 400 obras . Da infância no Vale do Sinos à consagração na Europa, Ernesto Frederico Scheffel tem muita história para contar. E contou, em livro, aos 86 anos, lançando uma autobiografia com detalhes de sua carreira: “Scheffel por ele mesmo”. Nas palavras do artista, é um registro para a posteridade. “Vou passar a ser mais conhecido”, avaliou, sem esconder, em meio às mais de duas mil páginas dos seus manuscritos, a ansiedade em ver o livro circulando. A realização é do Ministério da Cultura (Lei Rouanet), com patrocínio master de APLUB, patrocínio de Sacor Siderotécnica e Grupo Sinos e copatrocínio de Macrodoce, Johann Alimentos, Fenac e Artecola; apoio de Lauermann Schneider, Associação dos Contabilistas de Novo Hamburgo, ABC da Saúde e Luiz Jacintho Consultoria. A coordenação editorial é de Daniel Henz e Ralfe Cardoso, da Um Cultural, que elaborou o projeto técnico, e a edição de Angelo Reinheimer e Gilmar Hermes.
O livro “Scheffel por ele mesmo” é resultado de um trabalho minucioso de narração da trajetória vivida nas idas e vindas entre a região da Toscana, na Itália, que o artista diz ser “sua casa”, e o Vale do Sinos. O livro começou a sair do papel – ou a ir para o papel – em 2008, conta Angelo Reinheimer, curador da fundação. O sonho, no entanto, é bem mais antigo. “Ele sempre rascunhou apontamentos sobre a sua vida”, revela Reinheimer, que acompanha Scheffel desde 1984. São 386 páginas, entre textos e imagens. Quem conhece a Fundação Scheffel não a dissocia da Casa Schmitt-Presser, que preserva a cultura germânica. Uma ao lado da outra, na Rua General Daltro Filho. Só que essa parceira poderia nem ter começado. Na década de 70, quando o casarão que abriga a fundação foi destinado a esse propósito, também a Schmitt-Presser fora oferecida. Scheffel preferiu não aceitá-la. Era espaço demais. Quando soube da possível destruição, decidiu evitar. “Quando fui conversar com o proprietário, a implosão já estava autorizada pela Prefeitura”, lembra. “Ele pediu licença e fez uma ligação. Ouvi quando disse: cancela!” História relatada no livro.
Scheffel temobras públicas em Florença, Itália. Prêmios não lhe faltam. Para conquistar notoriedade, entretanto, passou por muitos obstáculos. Em 1947, a primeira grande oportunidade: convite para o Salão Militar de Artes no Rio de Janeiro. A viagem é mais uma das histórias registradas no livro. “Fui levado ao Rio em um avião da FAB [Força Aérea Brasileira]. Eu, no meio das cargas, com uns 15 trabalhos em baixo do braço. Quando cheguei me disseram: tira essa farda e vista-se. A Europa era uma questão de tempo. A partida ocorre em 1959. Antes de chegar à Itália, uma turnê por outros países em busca de aperfeiçoamento. A arte produzida em Florença assemelhava-se muito com a do artista gaúcho, do que decorre a explicação para a ligação maior com os italianos e não com a Alemanha, de onde descendia; ele é mais abstrato: “A alma não tem pátria.” Ernesto Frederico Scheffel é natural de Campo Bom e recebeu em 2004 o título de Cidadão de Novo Hamburgo.
A palavra do crítico Armindo Trevisan
Antes de mais nada, não tentemos enquadrar o artista na moldura de uma determinada corrente artística do século XX. Sua obra, a rigor, passa ao largo dos movimentos revolucionários do início do século, que provocaram terremotos e, ainda hoje, os provocam. Não se descobrem, na obra de Scheffel, subversões, bizarrices e escândalos vanguardistas. Talvez a parte mais polêmica e contestadora de sua produção sejam suas telas e desenhos eróticos, que propõem uma leitura marginal, porém estimulante, de determinados aspectos da sexualidade contemporânea. Afora isso, podemos dizer que Scheffel, sem minimizar a dimensão subversiva da Arte Contemporânea, procura manter-se em águas extraterritoriais.
A obra de Scheffel se enraíza na arte do passado, em especial na Arte Renascentista, e, em grande parte, nas expressões que floresceram a partir da segunda metade do século XIX. É tributária, em especial, das correntes do Realismo, do Simbolismo e do Romantismo. Scheffel bebeu de todas as fontes, também das contemporâneas. Mas tudo isso é filtrado por um temperamento que não quer abandonar o próprio caminho, pouco importa para onde este o conduza. Por nossa parte, destacamos alguns aspectos interessantes da contribuição do artista. Sua opção pelo figurativismo, sempre acompanhado por uma meticulosidade técnica que constitui um dos trunfos de sua afirmação pessoal. Cabe aqui uma pergunta: estará a figura exaurida? Terá ela dado o último suspiro? Cremos que não. Um artista contemporâneo chegou até a declarar: “A figura é a Terra Prometida”. Sob esse ângulo, permanecer fiel à figura significa, para Scheffel, tomar partido pela História, e pelas dimensões psicológicas e sociológicas da imagem. Por outro lado, numa conjuntura em que o descartável se torna avassalador, como não impressionar-se com o cuidado que o artista põe na elaboração de suas composições?
Em nossa opinião, convém valorizar as aquarelas e as criações gráficas de Scheffel. Pode ser que aí se encontre, senão a expressão maior de sua arte, ao menos uma contribuição de indiscutível atualidade. É preciso, igualmente, levar em consideração a parte documental da obra de Scheffel. Temos aí um artista cujas raízes étnicas estão vivas, cujas ressonâncias psicossociológicas têm tudo a ver com a terra natal, inclusive com o gosto dessa terra. Sabemos que qualquer artista pode chegar à universalidade através de seus trabalhos, mas antes de atingi-la necessita fazer um ato de juramento à sua própria terra – como diria Chesterton. Van Gogh será menos universal por ser holandês? Admitamos: os girassóis de Van Gogh não são, a rigor, holandeses. São girassóis de qualquer parte do mundo. Mas não podemos duvidar de que a mão que os pintou nasceu e aprimorou-se sob os céus de Rembrandt… É essa qualidade invisível que os torna imortais. De igual forma, a obra pictórica, gráfica e escultórica de Scheffel é a de um descendente de alemães que amou a terra de seus ancestrais, a despeito de sua vida, em grande parte, longe dela. É uma obra complexa, instigante, provocadora, com clareiras estéticas surpreendentes, que possui, entre outros méritos, o de repropor uma reflexão permanente e fértil sobre o que a cultura precisa para não se esquecer de si mesma.