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AGENDA CULTURAL

Vinte e cinco anos de arte

 

 

 

A Galeria de Arte Mamute, Porto Alegre, RS, promove no dia 27 de novembro, a abertura da exposição de comemoração de 25 anos de carreira do artista representado Antônio Augusto Bueno. A mostra intitulada “Toda Memória Flerta com o Infinito” tem a curadoria de Felipe Caldas e traz a público obras inéditas em pintura, desenho, gravura e site specific.

 

Acompanham a comemoração a instalação de uma escultura criada para a nova sede do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), intervenção urbana no Distrito Criativo em Porto Alegre e mostra de gravura em metal e monotipias no Atelier Jabutipê.

 

A palavra do curador

 

Na beira do rio, crianças brincam com o que encontram pelo chão. Pedras, folhas e gravetos tornam-se espadas, lanças, bengalas, varas de pescar, entre tantas outras coisas. A serenidade do lugar, apesar do vento constante, contrasta com a correria, com os gritos e as gargalhadas, espaço e tempo em que pedras se transformam em bolas, folhas em comida, grama em colchão, areia em castelo, em casa ou em um bolo e tudo pode virar sopa de repente. Quando crianças, nós transformamos o mundo à nossa volta, o quarto em jardim ou em campo de batalha, a cama em automóvel ou em foguete, barcos voam e aviões submergem como submarinos, nós transformamo-nos e transformamos o outro. Tudo são meios e suportes para criação de novos mundos, outras possibilidades para o existente e para a existência e, quando crescemos, a maioria de nós esquece dessa capacidade. A imaginação não é algo oposto à realidade, ela configura a realidade e torna possível outras realidades, assim como a compreensão de nós mesmos, de nosso tempo, de nossa existência e território; como do passado, do não dito, da escuridão e da luz inalcançável. Antônio Augusto Bueno é essa criança que brinca com gravetos, faz barcos voarem, coleciona mamonas, caroços de abacate, junta folhas, empilha coisas, caminha deslumbrado pelo mundo e risca sobre tudo. Neste ano de 2021 Antônio Augusto Bueno completa 25 anos de produção artística, um fazer que opera com diversas linguagens, desenho, pintura, gravura, cerâmica, fotografia, instalações, objetos tridimensionais. Reconhecido sobretudo por seu trabalho com desenho, no entanto, ao meu ver o que há de menor importância na produção poética do artista é uma discussão sobre linguagem estritamente. Essas linguagens são apenas meios para nos chamar a atenção sobre a dimensão do ser humano frente a uma existência efêmera, passageira, delicada, frágil, todavia, partícipe de um todo. Esta exposição é parte de um  projeto mais amplo que conta com quatro ações: um trabalho tridimensional no pátio do  MAC-RS, a exposição na Galeria Mamute, uma intervenção urbana no quarto distrito de Porto Alegre e a constituição de uma série de gravuras/monotipias no Atelier Jabutipê.  Estas ações articulam quatro instâncias produtivas e de circulação, o ateliê, a instituição museológica, a rua e a galeria comercial que fazem parte da pratica cotidiana do artista. O fazer de Antônio nestes 25 anos está embebido de uma hereditariedade artística, a comunidade que o circula e suas topografias e clima. Quando falo aqui em hereditariedade artística, estou pensando, justamente, no diálogo que os trabalhos de Antônio Augusto travam com a herança cultural e artística precedente e atual, sobretudo deste território, o Rio Grande do Sul, mas sem se limitar. A potência da linha, da visualidade dos chamados desenhos, está embebida de uma linha incontornável de Iberê Camargo, uma sujeira de Wilson Cavalcante (Cava), de uma trama e de uma complexidade entre gestos e grafismos de Teresa Poester, e há igualmente algo de Flávio Gonçalves, Gerson Reichert, James Zórtea, Gabriel Netto, entre outros colegas. Seus espaços vazios em confronto com pequenas áreas de forte densidade material convocam Cy Tombelly, levam ao diálogo com os desenhos de Nuno Ramos, Nelson Félix, e talvez Marcelo Solá. Seus gravetos armados têm algo de Carlos Pasquetti, de Hamilton Coelho, quanto talvez de Luiz Gonzaga de Mello Gomes, com quem trabalhou e, certamente, remete-nos a Ai WeiWei e Frans Krajcberg. Diferente dos citados, o trabalho de Antônio Augusto Bueno está embebido da milonga, do vento e do frio destes prados, ou seja, talvez no campo das artes visuais na contemporaneidade seja um dos artistas que mais dialoga com aquilo que Vitor Ramil chamou de Estética do Frio em um clima temperado de um Brasil que não é somente tropical. Não só porque trabalha com artistas deste território, ou em sua aproximação com os colegas artistas do Uruguai, mas sobretudo nos próprios trabalhos visuais, as grandes áreas dos desenhos remetem à planície, aos campos alagados, ao pampa, a um espaço sem grandes rompimentos topográficos em que o vento corre livremente, como os espaços em branco, as matizes baixas e as veladuras que baixam a vibração das cores; a um fazer que não é um grito ou êxtase expressivo, sequer um sussurro, mas uma fala mansa e contínua como a topografia da metade sul deste território e talvez seja, justamente, por isso tão natural a Antônio a aproximação com esses artistas que partilham de um mesmo comum, de um mesmo sensível. Os trabalhos bidimensionais evocam a dimensão da cicatriz. O que vemos não é um rasgo na carne pictorial mas um conjunto de ações de corte e sutura e isso ocorre tanto no papel quanto no tecido, e essa pele que exibe cicatrizes contém a memória construtiva do próprio trabalho, das referências artísticas, de sua hereditariedade, topografia e clima e talvez contenha a memória afetiva tornada material do próprio artista. A cicatriz é semelhante a um rastro, você não vê nada além da cicatriz quando se depara com ela, mas ela é o indício de um conjunto de eventos, a marca de uma vida pulsante, de um pensar e de um agir constantes, e, por isso, carrega consigo uma memória latente que talvez cumpra a função de lembrar-nos que “toda causa tem seu efeito, todo o efeito tem sua causa, existem muitos planos de causalidade, mas nada escapa à lei”. Antônio produz com a potência do ínfimo, com a harmonização dos movimentos contrários e com a condução de um mental partilhado por meio de seus trabalhos para outro lugar, para outra consciência de mundo, um vislumbre do homem primitivo ligado ao todo em que não existe dicotomia entre indivíduo e natureza, em que território, bioma, vento, frio e estrelas são extensões umas das outras. O mental não antecede a matéria, é parte constituinte desta, extensão, ou seja, quando olhamos o fazer artístico de Antônio, o mental não ocorre antes da ação, mas simultaneamente, em um jogo de forças, pois o mental da matéria, o mental do mundo, do céu azulado à noite estrelada também se projetam sobre o artista, assim criador e criatura tornam-se um só e não um antecede o outro, mas coexistem e (re)existem. O trabalho do artista é uma extensão dele e, simultaneamente, independente dele, ao fazer, o artista modificou-se e modificou a matéria, enquanto ela o modificava, e isso é partilhar e produzir para com o todo. O alquímico não está em uma rede imbricada de signos e de símbolos como estamos habituados e aprendemos dentro da história da arte e da cultura, mas na atitude perante a vida. A transubstanciação é constante, todos os encontros nos modificam, o rio nunca é o mesmo, o passo nunca é igual, a mão que desenha ou o beijo são irrepetíveis.”

 

Felipe Caldas

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